A história da polarização surge numa guerra de comunicação, numa guerra entre as nossas palavras, pelas quais expressamos a interpretação do mundo, sendo que este só pode ser transformado à vontade de quem o consegue explicar.
de Tiago Fontez
O senhor da caixa, ou o rapazote da coluna de jornal, fala com assertividade. Sentem-se sós, quase como que abandonados, e a admiração, a aflição, e até mesmo a consternação, fazem parte do baralho de emoções de quem tem espaço privilegiado para pregar. E afinal, o que pregam eles? Bom, certamente um prego não será, pois tal realidade, apesar de básica, ou elementar, para eles mais não passará de um acto rude. Por isso, alimentando ainda mais o ruído de fundo lá vem a polarização, com a adição de umas boas doses de verborreia, salpicada de anglicismo, e uma tese de sustentação embrulhada em papel machê, denominada de teoria da ferradura.
São centristas sem saber calcular a equidistância, ou são estrábicos em permanentes crises de autismo que, na sua tão própria realidade calculam os seus pontos referência, querendo mesmo impor estes à sociedade, colocando-lhe até o rótulo de extremos. Sim, porque as sumidades da tolerância, e do respeito, não alcançam a relatividade das posições; ao não conseguir fazê-lo, preferem etiquetar as suas caixinhas, não alargando horizontes, continuando nas suas realidades alternativas, ao invés de tentar realmente perceber a realidade.
E talvez seja por isto que, de vez em quando, se soltam encadeações de palavras que no seu agrupamento frásico tresandam a um surrealismo digno de Breton, ou Aragon. E talvez seja por isto que ouvimos dizer que há empresas a pagar salários elevados a jovens no seu primeiro emprego; ou que há jovens que não conseguem comprar casa na sua cidade por causa de um imposto municipal — isto para referir apenas dois exemplos recentes de alguns soluços destes centrões.
Mas para quem ainda não percebeu onde quero chegar, coloco agora de parte as vestes camaleónicas, vestindo o fato de macaco de quem trabalha para sobreviver.
Tem aflorado por aí uma ideia de que temos uma sociedade cada vez mais polarizada. Uma ideia com vários capítulos, desde o esbater do centro, à democratização da comunicação através das redes sociais, as fake news, o politicamente correcto, entre outros. Não quero aqui abordar os porquês da inexistência do tal centro, que apenas é, e sempre foi, uma ilusão política. Tal como também não quero abordar os porquês da democratização das redes sociais, se é bom ou mau, ou a quem as fake news servem. Muito menos vou entrar na ladainha da vitimização dos lesados do politicamente correcto. Tudo isto davam outros textos.
A história da polarização surge numa guerra de comunicação, numa guerra entre as nossas palavras, pelas quais expressamos a interpretação do mundo, sendo que este só pode ser transformado à vontade de quem o consegue explicar. No meio desta guerra, há uma permanente mistura de conceitos, de expressões, de confusões, sobreposições de opressões, acabando por colocar oprimidos contra oprimidos, e deixando quem realmente oprime, e difunde essa opressão, em cima do muro, de mãos livres e descansadas, apenas a apreciar.
Pois não é a mudança de conceitos, ou criação de categorias, com permanentes alterações ao dicionário, que altera a realidade material. Os apelos à interseccionalidade e ao identitarismo focam-se assim na experiência do indivíduo, numa guerra de ideias e linguagem. E daí escamotear-se a importância dos interesses económicos, passando os assuntos para, por exemplo, meras questões identitárias — como se a homofobia, o racismo, a misoginia, não fizessem parte, em si, de um problema de luta de classes, e só dentro desta, estas tivessem razão de ser. Pois o indivíduo não é o resultado de um conjunto de características, sendo que essas só têm relevância quando projectadas numa realidade material. De outra forma, consideraríamos, por exemplo, todos os pretos na mesma condição, ou todas as mulheres na mesma condição, chegando ao ponto absurdo de considerar que o opressor, por partilhar certos vectores com o oprimido, estariam estes na mesma posição.
No meio de todo este apontar de dedos, e de toda esta catalogação estéril, onde todos somos tudo, e ao mesmo tempo nada, rotulados e etiquetados, apenas para ficar em caixinhas, onde a omnipresença até passa a ser possível, há quem se sinta lesado e magoado na sua razão de ser. É que esta democratização da tarefa de catalogador acaba por atingir o comunicador, o comentador, o paineleiro, que ou é espoliado de tal tarefa, ou é atingido no meio de fogo cruzado, na permanente actividade da catalogação. Os que jazem caídos, ou melhor, catalogados, ascendem em certos nichos aos céus como mártires, o que diz muito do que foi o seu trabalho, as suas reproduções. Já os que pelo meio vão ficando, criam os seus Adamastores, como é o caso do “Políticamente Correcto” (que prometi, e prometo, não fazer uma real abordagem), e vão criando aparentes novos temas, como a polarização, colocando-se em posições de moderados — os tolerantes, os respeitosos, no fundo os únicos que conseguem acalmar as águas no meio da tempestade. Dizem que o centro, essa coisa fofinha, uma realidade virtual, o local imaginário por eles só criado, se vai esbatendo, quando na verdade o centro apenas significa uma versão soft, ligeira, de toda a opressão, representando uma estagnação na conquista de direitos, ou até mesmo uma agudização da opressão. Autoelegem-se como salvadores da pátria, suportam-se e apoiam-se uns aos outros, na defesa dos seus “brilhantes" estatutos. Quiçá um dia se organizem em sindicatos, mesmo vociferando tanto contra estes, já que minimamente vão organizando as suas “manifestações” — ou como eles lhe chamam, conferências — de onde poderiam sempre resultar uma base para novos capítulos do Apocalipse.
A verdade é que o Sistema também precisa de comunicar, sendo que este nunca teve problema em se automutilar, sabendo que, à partida, dali, tal como numa Idra, nascem outras tantas cabeças. A comunicação é essencial, quer seja para a partilha de experiências e necessária organização, ou para o seu contrário: o isolamento, a individualização, a promoção da desorganização. E certamente, num mundo transformado numa Babel, desigual e injusto, com proliferação de diferentes linguagens, sem identificação da real raiz etimológica da exploração, onde possamos combater o Sistema, este último apenas sobrevive.
Não há novidade aqui, tal como não há na existência de pólos, pois estes estão presentes nas relações mais básicas de sobrevivência na sociedade. Restar-me-ia apenas lamentar, num mundo estratificado e desigual, que os criadores da tal ideia “inovadora" da polarização, não identifiquem pólos tão básicos como o que está inerente à representação do salário. Pois se por um lado, para o patrão, o salário é um custo de produção, que este pretende reduzir para aumentar o lucro, para o trabalhador, o salário é o seu meio de sobrevivência, sendo que esta fica mais complicada com a redução deste. Mas para este tipo de polarizações, aparentemente está esgotado o stock de consternação.
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