top of page

Por uma guerra contra a guerra às drogas

"The Nixon campaign in 1968, and the Nixon White House after that, had two enemies: the antiwar left and black people. You understand what I'm saying? We knew we couldn't make it illegal to be either against the war or blacks, but by getting the public to associate the hippies with marijuana and blacks with heroin, and then criminalizing both heavily, we could disrupt those communities."

Entrevista a John Ehrlichman, assessor para assuntos domésticos de Nixon, 1994


de Constança Cardoso


Não é novidade que a famosa guerra às drogas começada por Nixon era, na verdade, uma guerra contra pessoas. A citação acima não é de nenhum perigoso intelectual marxista, mas sim do próprio assessor para assuntos domésticos de Nixon.


Não é novidade que a cruzada anti-drogas era politicamente e racialmente motivada. Se a verdadeira preocupação do governo dos Estados Unidos nesta época (que durou entre 1971 e 2015) fosse realmente a saúde publica, nunca teriam sido proibidos dezenas de estudos inovadores sobre os usos medicinais dos chamados cogumelos mágicos.


Para alem disso, há fortes acusações que indicam que a CIA esteve envolvida no tráfico de cocaína durante a guerra civil na Nicarágua, de forma a financiar os Contras (milícia de extrema-direita) a troco de cocaína que seria trazida para os Estados Unidos e transformada em crack para depois ser distribuída nos guetos altamente racializados da Califórnia. Ainda hoje, esta substância afecta brutalmente as comunidades marginalizadas norte-americanas.


Um pouco por todo o mundo, as lógicas classistas e racistas da guerra às drogas mantém-se, mesmo que não sejam tão intencionais como quando pensadas pelo governo de Nixon e seus sucessores. Isto porque são sempre as camadas mais desprotegidas da sociedade que acabam por sofrer com a forte penalização do consumo e venda de drogas.

São as suas áreas de residência que são mais fortemente policiadas e onde as forças de “segurança” agem com mais brutalidade. São também estas comunidades que estão, à partida, mais vulneráveis à venda de substâncias ilícitas, uma vez que é comum não conseguem arranjar oportunidades de trabalho com condições dignas.


Se há algo que se tem tornado cada vez mais evidente ao longo da história é o facto de que a proibição, a punição e a censura nunca são formas eficazes de resolver algo. Pensemos, por exemplo, na questão do aborto. A sua proibição não impede muitas mulheres desesperadas de o tentarem fazer. Impede, no entanto, que estas o possam fazer de forma segura e digna, o que, em muitos casos acaba por se tornar numa sentença de morte.


Qual será, então, a opção mais inteligente a tomar:

  1. Negar o acesso à educação sexual nas escolas, proibir o aborto e punir as mulheres que o fazem clandestinamente (isto é, as que sobrevivem ao processo)?

  2. Promover a educação sexual desde cedo, disponibilizar consultas gratuitas de planeamento familiar e garantir que mulheres que queiram abortar tenham todas as condições de segurança para o fazer?

Esta questão é facilmente aplicável à questão das drogas. A sua proibição e censura não irá fazer com que as pessoas deixem de as usar. No entanto, irá impedir que sejam usadas com segurança. Primeiro, porque o mercado não é regulado, ou seja, as substâncias não têm qualquer tipo de controlo de qualidade, segundo, porque o estigma relativo ao consumo dificulta o acesso a informação sobre riscos e formas seguras de usar.


Apesar de tudo isto, felizmente existe em Portugal uma iniciativa que, pelas suas próprias palavras, “surge da vontade de inspirar mudanças ao nível das políticas de drogas e promover o empoderamento das pessoas que as usam, bem como das suas famílias e comunidades. Enquanto coletivo, trabalhamos para a promoção de padrões de consumo mais seguros e informados e para a implementação de intervenções e políticas mais humanas e baseadas na evidência”


Para além de ter um papel muito importante enquanto espaço pedagógico, onde podemos encontrar informação sobre várias drogas, redução de riscos, sexualidade, género, e por ai em diante, a Kosmicare oferece um serviço de testagem de drogas totalmente gratuito, anónimo e confidencial. Isto significa que as pessoas que usam drogas podem “analisar quimicamente as substâncias psicoativas que pretendem consumir ao mesmo tempo que acedem a aconselhamento especializado sobre as substâncias, nomeadamente estratégias para diminuir os riscos associados ao seu consumo atendendo às doses, efeitos, vias de consumo, disposição mental (set) e contexto (setting)”. Para além disso, ainda oferecem consultas de apoio psicológico e redução de riscos a pessoas que estejam a ser afectadas pelo consumo.


A história ensinou-nos que a guerra contra as drogas nunca foi aliada da saúde publica. Antes de qualquer coisa, foi uma guerra contra pessoas, tal como a guerra anti-aborto é uma guerra contra as mulheres. A única maneira de garantir a redução de riscos associados ao consumo de drogas, bem como de gravidezes não desejadas e mortes por aborto inseguro, é investir na educação obrigatória e livre de estigmas sobre sexualidade e uso de drogas, para além de disponibilizar serviços públicos de apoio ao consumo e sexualidade seguros (distribuição de contraceptivos, consultas de apoio psicológico, redução de riscos e planeamento familiar, serviços de testagem de drogas, etc).


Neste sentido, a Kosmicare representa um passo fantástico nesta luta pelo uso de drogas com segurança, liberdade e sabedoria. No entanto, o caminho a percorrer ainda é longo. Espero que mais iniciativas como esta vão surgindo pelo país, e pelo mundo, principalmente junto das comunidades mais marginalizadas e que os próprios Estados assumam que é necessário começar a sensibilizar os jovens para estes assuntos no ensino obrigatório.


Comentários


bottom of page