Recentemente, presenciei alguém a caracterizar outro alguém de intelectual - um adjetivo tão comum entre profissionais da academia, inúmeros escritores, artistas, pessoas de “sucesso", e que potencia uma série de interrogações, enquanto desenha uma bem visível linha de separação.
de Raquel Batista
Fotografia de Eduardo Tomé/JN
Porque é alguém intelectual? O que é isto de ser intelectual? Quem são os intelectuais? Quem é define quem é e o que é intelectual? Se alguém é considerado intelectual e outro alguém não, o que isso significa?
O vocábulo “intelecto” veio do latim “intellectus”, que significa “ler por dentro” - trata-se do ato de refletir e de utilizar a consciência e a inteligência. No seio da filosofia, o olhar sobre este conceito é diferente da própria origem da palavra: refere-se ao conceito sobre o que é um ser intelectual.
Desde a Antiguidade, sobrevivem questões relacionadas com as teorias do conhecimento e discussões sobre a construção do intelecto, originárias da Grécia, com Platão, e passadas ao seu discípulo, Aristóteles.
Platão acreditava que o ser humano já nasce com ideias assimiladas na mente e que, quando está em contacto com o mundo exterior, os conceitos que já possui reavivam-se na sua memória. É saber algo, mas não saber que se sabe - aquela velha hipótese do “nascer com talento”. Por seu turno, Aristóteles afirmava que as ideias são formuladas a partir da experiência e da observação dos objetos - aquilo a que ele chamou de “mundo sensível”.
O que significa que o intelecto é enriquecido através de novas informações e que, por mais que conheçamos um objeto ou conceito, é possível adquirir mais informações sobre o mesmo.
Considero relevante este debate, não pela importância que terá no mundo, mas sim pela sua origem - a origem da intelectualidade -, que podemos chamar também de um ingrediente da receita da separação dos povos.
Quando luto contra o poder de tempo, pesquiso sobre nomes que passaram na mesa de jantar da casa dos meus pais. Natália Correia foi uma dessas pessoas, sempre lembrada como mulher rebelde, figura importante e política distinta.
No documentário “A Insubmissa”, sobre a vida e obra de Natália Correia, é dito que Natália não gostava de ser conotada de intelectual, mas a verdade é que, por muitas pesquisas que se façam, é difícil encontrar algum registo sobre a poeta que não contenha uma palavra referente ao seu intelecto, nem que não se refira ao seu botequim como salão de encontros da elite intelectual.
Quanto ao botequim, Natália descrevia-o da seguinte forma:
“Não tenho qualquer salão literário. Essa é uma das lendas que inventaram a meu respeito, não sei porquê. As pessoas, aqui em Portugal, estão sedentas de acontecimentos. E, muito simplesmente, resolveram transformar num acontecimento uma coisa para a qual não tenho a mínima vocação. Não tenho qualquer salão literário, como não teria paciência para o manter, como me parece que essa é uma ideia cediça, bolorenta e ridícula. Não conheço salões literários na época actual. A única coisa que me acontece – e acho que me pertence esse direito – é receber alguns amigos que, frequentemente, vêm a minha casa. Ora isto é vulgar em todas as casas de Lisboa onde há interesses intelectuais, onde se discutem problemas de ordem literária ou não.”
O que sempre existiu foram pessoas com intelecto, também pessoas sem tempo para adquirir novas informações, validá-las e oferecer algo à humanidade.
A distinção entre grupos de intelectuais e os outros é perigosa e sempre fértil.
A ideia de tempo e de dinheiro são claras, pura ficção, pura utopia que o Homem criou.
A ideia de dinheiro, que está associada à ideia de poder, de liberdade e de intelecto no seu sentido mais bacoco, restringe todas as liberdades a que o ser humano pensa que pode atingir com ele. Coloca-o solitário, agrupado em pequenos ou grandes nichos de outras pessoas intelectuais. E por fim, a morte.
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