Como vamos voltar para as nossas vidas, com ou sem máscara, sabendo agora que, afinal de contas, este regime de “solidariedade imposta” não é capaz de suportar tanta gente, infelizmente, carenciada?
Crónica de Maria Francisca
Ilustração de Maria Ervilha
Estaremos, sensivelmente, no final das contas, fechados em casa, dois meses. Não tarda, sairemos, ainda que com restrições, segundo tem sido prometido por quem dá voz ao povo (e ao combate da pandemia), e a vida, aquela tal e qual a conhecemos, talvez não regresse de imediato…
Estes quase dois meses de isolamento social puseram, a nu, um conjunto de realidades e características de Portugal que, quiçá pela conveniência da sua obscuridade, não eram assim tão claras. Não obstante, estarmos todos aqui, e de ser um vírus pouco elitista e pretensioso, esta pandemia abriu portas de casas cujo interior nunca quisemos ver.
Disse-se, por aí, que “estávamos todos no mesmo barco”, porém o meu barco permanece estável, seguro pelo meu emprego, e pela estrutura familiar que sempre me suportou. Por outro lado, soube que os barcos de outros serão achados arqueológicos, subterrados no mar, descobertos por arqueólogos marinhos daqui a uns anos, graças a esta pandemia, e graças à situação socioeconómica em que antes já nos encontrávamos, mas de que não falávamos (ou, como disse o Presidente da República, num programa divertidíssimo, “ele é um otimista!”).
Entretanto, poderemos voltar para a rua. Aos poucos, a nossa vida (seja lá o que essa palavra signifique após tudo isto) regressará ao normal e, como tal, é provável que a nossa generosidade, a nossa atenção para com o outro e a nossa solidariedade sejam substituídas por coisas igualmente nobres como o nosso tempo, as coisas que vamos poder experimentar e comprar, os nossos dilemas do dia a dia, etc..
No entanto… E agora? Como é que vamos viver sabendo que, afinal, contra todas as expectativas, existe um Portugal pobre? Um Portugal que depende de instituições de solidariedade, e da disponibilidade física dos seus voluntários; um Portugal que descobrimos que é velho, e que por isso precisa de estar vinte e quatro horas sob vigilância por pessoal médico e auxiliar, em lares que nem todas as famílias podem pagar; um Portugal em que existem muitas crianças cujas únicas refeições decentes que fazem é na escola… Como vamos voltar para as nossas vidas, com ou sem máscara, sabendo agora que, afinal de contas, este regime de “solidariedade imposta” não é capaz de suportar tanta gente, infelizmente, carenciada?
Avizinham-se tempos difíceis. Em que seremos obrigados a apertar o cinto, que, inevitavelmente, asfixiará alguns (a última crise ainda não foi há tempo suficiente para termos saudades). Em que as filas para o IEFP darão voltas ao quarteirão, e não será (só) pela distância aconselhada pela Direção Geral de Saúde. Em que as famílias mais carenciadas precisarão de um apoio mais ruidoso que a Telescola ligada no volume cinquenta.
Parece-me que poderíamos aproveitar o apelido de “guerra” que se deu a esta história toda, e fazer jus à expressão “Rei Morto! Rei Posto!”. Mudar as coisas. Experimentar outros planos. Reerguer, de forma mais ou menos semelhante, ideologicamente, à que temos adotado (decidamos todos), Portugal.
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