Entrevista a João Reis, assistente de curadoria na Culturgest
A paixão de miúdo pelo cinema e pela fotografia levou-o para o curso de Arte Multimédia, na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, mas recentemente descobriu que a curadoria é mesmo a sua praia.
Actualmente assistente de curadoria na Culturgest - enquanto conclui o mestrado -, João Reis é, na acepção de Isaiah Berlin, uma verdadeira raposa. Divide o seu tempo entre os muitos projectos em que está envolvido e não perde tempo. Felizmente, o Crónico apanhou-o em movimento. Foi Presidente tanto da Direção como da Assembleia de alunos da FBAUL, trabalhou em part-time durante a licenciatura e participou em inúmeras exposições, ciclos de cinema, eventos culturais e projectos associativos ao longo dos últimos anos.
O Crónico conversou com o curador e estudante de Belas-Artes sobre o seu percurso académico e profissional, e sobre aquilo que foi aprendendo nas diferentes experiências que viveu.
Estou a conversar com um licenciado em Arte Multimédia, actualmente mestrando em Crítica, Curadoria e Teorias da Arte, na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa (FBAUL). Começo pelo início: a veia artística sempre foi uma vocação desde cedo ou só vieste a descobrir mais tarde este interesse?
Mais ou menos. Nunca fui aquele miúdo que pegava sempre em lápis e canetas, mas tive uma relação muito próxima com o cinema e a fotografia. Isso veio da minha família, que é obcecada por cinema. Relativamente às artes visuais, foi uma coisa mais difícil. Os currículos escolares, no secundário, são muito específicos e, nessa altura, houve um distanciamento relativamente àquilo que queria fazer no futuro. Penso que nunca houve aquele momento em que estalas os dedos e já sabes o que vais fazer. Sempre me interessei por várias coisas.
E acabaste por escolher Arte Multimédia porque é um curso muito polivalente, certo?
É verdade, mas eu não o escolhi no início. Entrei num curso de Ciências de Arte e Património, que estava muito vocacionado tanto para curadoria como para conservação e restauro do património. No entanto, acabei o primeiro ano e decidi que não era aquilo que queria fazer, porque precisava de algo que me estimulasse mais a criatividade. A Arte Multimédia surgiu como uma área mais polivalente nesse sentido.
Qual é o teu maior medo? Não ter trabalho num futuro próximo.
Foste Presidente, tanto da Direção, como da Assembleia Geral da Associação de Estudantes (AE) da FBAUL. E durante o teu percurso académico tiveste uma participação muito activa enquanto representante dos estudantes da faculdade. Que lições retiras desta tua experiência?
A experiência estudantil é muito interessante. No secundário, não manifestei interesse em participar numa estrutura associativa. No entanto, quando entrei para a faculdade, fiquei mais ciente das pessoas à minha volta e do contributo político e associativo que podes dar. Entrei na Associação de Estudantes como vogal no departamento de cultura, porque queria dinamizar ciclos culturais, como o cinema, por exemplo. Mais tarde, acabei por ganhar um interesse maior na dinamização da própria associação e da faculdade num todo, de um ponto vista mais político e associativo, e isso levou-me ao cargo de Presidente da Direção.
Consideras que o meio político que as AE representam constituem também uma forma de impulsionar o meio artístico e cultural? Como vês essa relação político-artística?
Como é comum desde há muitos anos, o meio artístico é muito precário e isso leva a que a acção política tenha um grande peso naquilo que é a vida dos estudantes e daí para a frente também. As associações de estudantes sempre tiveram um papel muito importante. Em termos artísticos, essa ligação é mais evidente. Se pensarmos em todos os constrangimentos vigentes antes do 25 de Abril, os movimentos estudantis procuraram revolucionar esse paradigma e abrir algumas portas. Hoje em dia, na Faculdade de Belas-Artes, ainda temos professores que fizeram parte desses movimentos.
Qual o traço de personalidade que tu mais deploras nos outros? Falta de humildade e empatia para com os outros.
Concebeste, como curador, uma exposição na faculdade chamada “Contra-Reforma”, uma retrospectiva das lutas do movimento estudantil, não só da tua faculdade, como de outras. Olhando para trás, consideras que hoje esse movimento deixou de ser menos proactivo ou reivindicativo? Há uma diferença entre o espírito contestatário de outrora com a participação dos jovens actualmente?
É interessante comparar os dois períodos. Na altura em que fiz a exposição, foi muito giro olhar para trás e pensar "bem, nós agora não estamos a fazer nada comparativamente aos movimentos de 1974 ou 75". O arquivo da FBAUL começa por volta de 1972-73. Tem uma grande coleção de revistas e documentos, com vários manifestos de várias faculdades. Há uma grande coleção de registos dessa altura. E claramente, no passado, as pessoas eram muitos mais vocais e contestatárias, porque vieram de um período em que não havia liberdade de expressão e essas acções foram essenciais no processo de transição. Essa exposição fez-me ver que havia uma diferença no tom de contestação, mas nós também chagámos a um momento, de certa forma, mais dormente. E a política hoje em dia é feita de uma forma mais “suave”. Essa suavidade na diplomacia é necessária também entre as associações de estudantes. Podemos dizer que o interesse da parte dos jovens hoje é muito menor porque estamos numa posição mais confortável do que na altura.
Não há uma necessidade de emancipação.
Sim, essa necessidade suavizou porque hoje em dia as coisas estão relativamente boas quando comparamos com o passado.
Qual é a personalidade viva que mais admiras? Não gosto de criar ídolos. Algum cineasta, escritor ou artista.
Exposição "Contra-Reforma", organizada pela Associação de Estudantes da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa
Foste trabalhador-estudante, um período certamente complicado para ti, uma vez que sentiste na pele a dificuldade em conciliar o trabalho com o estudo. Partindo da tua experiência e do teu conhecimento interno do meio académico, sentes que as universidades no geral se preocupam com as situações precárias dos seus alunos?
Na verdade, não são as universidades que têm poder para mudar a forma como os apoios são dados ou o valor das propinas. As faculdades são subfinanciadas e isso deixa pouca margem para ajudar os alunos. Contudo, há alguma responsabilidade, como, por exemplo, na questão da definição dos tectos máximos para as propinas de 2º e 3º ciclos. Por outro lado, sinto também que, da parte dos estudantes, há uma ignorância relativamente àquilo que devem fazer.
Achas que há uma intenção em tornar a vida mais difícil para os estudantes em certos aspectos?
A verdade é que as propinas acabam por ser um entrave à educação e os estudantes têm de arranjar uma forma de pagar as suas despesas. Trabalhar em simultâneo com os estudos acaba por ser uma experiência muito ingrata, porque o único tempo que tu tens para parar é para dormir. Na minha opinião, aquelas histórias do esforço hercúleo para conseguir ultrapassar os vários obstáculos da vida, hoje em dia, são levadas a um extremo e essa não é uma maneira de começar o diálogo.
Qual é a tua maior extravagância? Tentar arranjar espaço e tempo para tudo.
De momento, és assistente-estagiário de curadoria, na Culturgest [Fundação da Caixa Geral de Depósitos para a Cultura]. No passado, já tiveste projectos enquanto curador no Museu Militar e na Fábrica "Features" no Chiado. Como artista e curador, procuras mais o teu espaço individual ou preferes a concepção e processo colectivos?
Essa pergunta explica o motivo pelo qual eu segui curadoria. Eu passei de Arte Multimédia para estudos de Curadoria, porque comecei a perceber que o processo artístico era muito mais solitário. Percebi que o que eu estava a fazer não eram objectos artísticos: no fundo, era a curadoria das ideias que eu tenho.
Que actividades ou ferramentas são essenciais para o João-curador, desenvolver o seu processo artístico?
O trabalho curatorial não é um trabalho artístico, mas é um trabalho criativo. A curadoria, na verdade, não é só um trabalho de programação, não é só a compreensão pela obra de cada artista, não é só a exposição das obras no espaço e observar como essas obras coabitam a mesma área - a curadoria acaba por abranger isso tudo e muitas outras áreas.
Mas o curador, directa ou indirectamente, tem um papel artístico na forma como organiza o trabalho de outrem e essa organização tem uma influência na transmissão da mensagem ao espectador.
Sem dúvida, mas resta saber se a mensagem que o curador quer passar se sobrepõe à obra de arte. Existe uma linha muito fina na qual o curador tem de se questionar se o seu trabalho esconde a mensagem que o artista quer passar e, se assim for, dar um passo atrás.
Qual é o teu actual estado de espírito? Cansado, não no mau sentido.
Voltando um pouco atrás, que outras actividades ou áreas associas ao teu processo criativo em curadoria?
A arte contemporânea cruza-se cada vez mais com outras disciplinas, sejam científicas, artísticas ou literárias. O que eu leio acaba por estar mais relacionado com teoria de arte e estética. No entanto, a ciência vai tendo gradualmente um papel fundamental na compreensão da arte contemporânea como um todo. Por exemplo, quando um artista está a trabalhar com conceitos como o Antropoceno ou a Inteligência Artificial, a função do curador é também compreender aquilo que está a ser ilustrado. A arte liga muitas outras áreas e eu sinto que estou no sítio certo porque consigo ir buscar muitas coisas. É fundamental ter alguma curiosidade para pesquisar e perceber novos temas.
Dos projectos em que já estiveste envolvido, quais foram para ti os mais estimulantes?
Enquanto estive na AE, uma das coisas que mais me deu prazer foi programar ciclos de cinema na faculdade. Foi estimulante pensar com cabeça, tronco e membros nos filmes que queria apresentar, no que escrever nas folhas de sala e também na mensagem que os realizadores queriam transmitir. Em segundo lugar, a exposição em que fiz curadoria no Museu Militar foi uma das que eu gostei mais porque me ajudou a perceber o que eu queria fazer.
Alguns cartazes dos ciclos de cinema organizados por João Reis e pela AEFBAUL
Em que consistia esse projecto no Museu Militar?
A exposição foi o resultado das obras de um conjunto de artistas de Belas-Artes. O Museu Militar foi o sítio escolhido porque o tema era precisamente sobre a guerra e a paz e sobre a forma como, no século em que vivemos, a nossa geração olha para conflitos bélicos ou para o clima de pacifismo que existe na União Europeia, há alguns anos. No nosso caso, a Guerra Colonial, em termos históricos, está muito próxima de nós; no entanto, nós não a vivemos. Isto significa que a única maneira através da qual contactamos com conflitos é muitas vezes através da televisão ou das redes sociais. Foi um desafio para estes artistas representar algo que não nos é tão real como era para os nossos avós.
Exposição "Sonhos de Guerra e Paz", no Museu Militar. Na primeira fotografia, a obra é da autoria de Fábio Colaço. Na segunda imagem, a escultura é de Maria Máximo, a pintura da parede esquerda de Ana Ferreira e a da direita de Rafael Fráguas
Qual é para ti a virtude mais sobrestimada? A felicidade extrema. Algo de estranho se passa com aquelas pessoas que estão sempre felizes.
Em 2021, foi inaugurado um novo projecto cultural em Sintra, a "Claraboia - Rede Cultural Sintra", do qual tu fazes parte. A associação propõe ser “um espaço de encontro livre e informal de indivíduos, tendo em vista a diversidade, interligação e diálogo intercultural.”. Através de que iniciativas e propostas se materializa esta missão cultural?
Sintra é um dos concelhos mais populosos do país e é um desafio muito grande porque tem duas realidades muito diferentes: a dos subúrbios, que são simples dormitórios, e a da vila de Sintra e das aldeias à sua volta.
São dois mundos muito contrastantes.
Exacto. É um confronto entre pessoas que vêm de sítios muito diferentes. O desafio da Claraboia passa por encontrar uma forma de nós podermos oferecer não só aos sintrenses da vila, mas também aos habitantes dos subúrbios, opções culturais. Na minha opinião, tem sido uma falha no concelho ao longo dos anos. O projecto surgiu porque os membros da Claraboia viram uma necessidade de descentralizar a cultura. Sintra tem muita gente, mas a cultura está toda em Lisboa.
E não nos apercebemos, quando ouvimos a palavra “descentralização”, de que é um processo que vai muito para além do interior de Portugal. A descentralização da cultura também se aplica aos subúrbios dos grandes centros urbanos.
Sim, exactamente. No ano passado, já tivemos algumas iniciativas. Este ano, entram os desafios logísticos concretos, isto é, de que forma se arranja financiamento, como chegar às pessoas da forma mais abrangente possível. O apoio tem vindo principalmente de autarquias. É um desafio grande, mas compensa porque acaba sempre por dar alguma coisa ao concelho.
Que palavras ou expressões usas demasiadas vezes? Tipo, incrível e interessante. São expressões que acabam por abarcar a nossa geração toda.
Exposição "Liquidar" da autoria de gonssalo (nome do artista) - fotografias de Gonçalo Silva
Os nossos leitores vão ler a tua entrevista no dia seguinte às eleições. Todos sabemos que este é um momento particularmente difícil para todos os profissionais da cultura. Em dois ou três pontos, o que consideras ser mais importante, neste momento, para combater os problemas estruturais do sector?
O mero valor de 1% do Orçamento do Estado para a Cultura seria um bom começo. Essa medida daria mais conforto aos profissionais da Cultura. Segundo, regulamentar o estatuto destes profissionais também seria um avanço necessário. A verdade é que os apoios actuais acabam por ser bastante ineficazes e muito burocráticos. Por outro lado, uma das coisas centrais à prática artística são os hábitos culturais. Portugal não os tem e esse é talvez o maior problema para a cultura. Os hábitos culturais criam-se e há países que o fazem eficazmente. Mas para que tal aconteça, primeiro, é preciso que as pessoas tenham estabilidade e isso não tem existido em Portugal. A segunda condição é o financiamento. O pouco financiamento que há hoje em dia não se converte em nada, pela falta de público.
E nesse ponto, não achas que a educação tem um papel fundamental?
Claro que tem e a educação para a cultura é essencial para que esta sobreviva e resista. O que vemos hoje na cultura é um retrato do que acontece na educação. Quem tem hábitos culturais são as pessoas que têm mais dinheiro. Uma família que não tem margem para comprar um livro ou ir ao cinema ou a um concerto, vai consumir cultura mais dificilmente.
Já levas contigo uma bagagem impressionante de projectos e criações. Como te vês daqui a 10 anos?
Em primeiro lugar, gostava de ter várias oportunidades curatoriais e que essas oportunidades não surgissem apenas no estrangeiro. A fuga de cérebros também se aplica ao meio artístico. Gostava muito que não tivesse de emigrar para ter oportunidades. Gostava de ter um trabalho que me desse alguma estabilidade. Infelizmente, esta palavra não liga bem com cultura neste momento [risos].
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