Em Portugal temos 4 canais generalistas, sendo que ainda temos em sinal aberto mais 3 canais, incluindo aqui Assembleia da República TV. As estações mais vistas são a TVI e a SIC, que andam em constante disputa por audiências, chegando ao ponto de ocuparem horário televisivo com programas de semelhante, ou até igual, conteúdo.
de Tiago Fontez
Fotografia de Inês Leote
Temos os programas da manhã, com rubricas iguais, em dias alternados; notícias; um programa que precede o programa da tarde; ficção/novelas e reality shows; notícias; e mais ficção/novelas e reality shows – e de vez em quando o desporto (em Portugal, infelizmente, significa futebol). O conteúdo televisivo também é uma forma de analisar a sociedade em que vivemos, mesmo que apareçam umas quantas pessoas a dizer que não vêm televisão, quer seja porque estão a trabalhar, ou porque não têm paciência para o conteúdo.
Contudo é interessante perceber o que passa na nossa televisão: o meio mais bem qualificado para chegar às massas – ainda que parecendo esta uma afirmação polémica devido à internet e suas redes sociais. Ao analisar o conteúdo programático das estações com maiores audiências é de realçar o foco dado às crónicas criminais, que vão ganhando peso na parte da manhã, e até já na parte da tarde. As crónicas do crime chegam a ter perto de um terço do programa da manhã, na SIC e na TVI, sendo que a SIC tem um programa específico após a hora de almoço, com um jornalista especializado na matéria do crime.
É certo que, a esmagadora maioria dos portugueses tem acesso a serviço de TV Cabo (pelo menos assim era denominado até há bem pouco tempo), mas aí a prevalência é dada ao desporto, canais de notícias 24 horas, que analisam incidentes ao momento, programas onde se discutem os lances do jogo do fim de semana, e pouco mais. Neste pouco mais está inserida a animação (que para aqui não é chamada), cinema e canais de documentários.
Se retirarmos da equação a animação e o desporto – que de vez em vez tem os seus casos de polícia – ficamos mais uma vez subterrados em crime, quer seja de forma ficcionada no cinema e nas séries, quer seja em canais de documentários. E sobre séries, cinema e documentários, e a sua tendência para temas sobre crime, as plataformas de streaming muito têm a dizer sobre isso. A imprensa escrita, também não ajuda, uma vez que o jornal mais vendido, Correio da Manhã, passa o tempo a publicar – ou até mesmo publicitar – o crime.
Apesar desta análise, o tema desta crónica não são os media, dos quais nem falo da velhinha rádio. Se falasse, provavelmente teria de falar do rap, e o culto aos gangsters, ou do punk rock, e a sua ode à desordem, mas mais uma vez o tema não são os media. O tema passa pelo tempo que gastamos a falar, e maioritariamente, a condenar pessoas. O foco que é dado a agendas securitárias, onde se criam estereótipos e se explora o medo. Passamos demasiado tempo armados em juízes, apesar de não termos estudado para isso, nem recebermos para isso.
Passamos demasiado tempo a empestar o espaço público com os nossos medos, reproduzindo afirmações que colocam rótulos, criam trincheiras, exclusões, barreiras à socialização e barreiras à ressocialização, esquecendo-nos sempre que poderíamos estar a falar de nós, ou que falamos contra nós. E isto não é um discurso de superioridade, mas antes mera constatação do nosso comportamento em sociedade, que é comprovado através da caixa de ressonância da nossa cavidade craniana, os media.
Por isso, antes de mais, façamos do nosso tema, falar do que se passa nas prisões, o que estas são, mas também de como saem de lá as pessoas. Como é o mundo para alguém que está dentro de uma prisão? Como é o mundo para alguém que sai de uma prisão? Serão estes os melhores meios para lidar com o crime? Estas foram algumas das questões que a Reshape colocou em debate, na sua conferência, Prison Insights 22, dedicando-se ao tema pouco falado na nossa sociedade – as cadeias e o futuro de quem lá vive após a saída.
Para quem desconhece, a Reshape descreve-se como uma “organização cívica e social”, que visa “garantir a reinserção digna de todas as pessoas que estão ou estiveram presas (…) implementa e dissemina novas abordagens que transformam as vidas de todas as pessoas que estão ou já estiveram presas, fornecendo-lhes as ferramentas e estímulos necessários para a sua efetiva reinserção”. E assim foi no passado dia 11 de maio, na Fundação Calouste Gulbenkian.
Foi o primeiro contacto que tive com organização, que aborda uma temática que me é querida, não só porque sou um estudante de Direito, mas também porque penso que tem existido uma crescente desumanização relativamente ao tema judicial e criminal. É óbvio que temos evoluído, é óbvio que temos dado grandes passos. Quanto mais não seja, porque Portugal foi o primeiro Estado soberano a abolir a pena de morte, pena esta que existe em variadas partes do mundo, até nas ditas mais avançadas.
Contudo, o retrocesso tem sido abordado ao ponto de, em debates políticos, a reintrodução de tal pena ter sido protagonista, ou até se ter abordado temas como a castração química. E o problema adensa-se quando, de maneira acrítica, certas camadas da sociedade acolhem as propostas.
A facilidade com que são disseminadas e aceites ideias como prisão perpétua, o aumento das penas e até a criação de algumas, como forma de combate ao crime – como se ser criminoso, fosse qualidade biológica, inerente ao ADN e por isso a exclusão da sociedade fosse a única solução. Esquecem-se, estes, que ao mesmo tempo que excluem alguém da sociedade, criam uma nova - a cadeia - e que a falta de preocupação com a vida nas prisões apenas irá gerar, futuramente, novos crimes e reintrodução de pessoas nas cadeias. E mais, esquecem-se que esta falta de preocupação, mais tarde ou mais cedo, baterá à sua porta.
É por isto que, debater a vida nas prisões, se torna tão premente. É por isto que, conferências como a Prison Insights, têm a sua importância. É importante a partilha de ideias e experiências que humanizam de novo humanos, que por certas vicissitudes da vida, praticaram os seus erros e que mais facilmente são consignados ao desdém, do que à compreensão.
Por exemplo, que diriam de uma prisão onde a sua população pode votar e decidir sobre o que querem fazer? E se vos dissesse que uma dessas decisões foi fazer uma marcha de orgulho gay, afirmando a solidariedade para com toda a comunidade gay, especialmente com a que está na cadeia? E se numa cadeia existisse uma rádio que falasse de assuntos tão básicos quanto a saúde mental e onde houvesse podcasts, nos quais tanto participa a comunidade prisional, como pessoas que já estiveram presas? Isto acontece na Noruega e o testemunho foi dado pela RøverRadion, uma rádio da prisão desenvolvida desde 2011, inicialmente para a prisão norueguesa de Halden, tendo sido alargada a outras prisões norueguesas, devido ao seu sucesso.
Como sociedade vivemos demasiado embrenhados na ideia de que a cadeia deve ser um inferno, um local de sofrimento, quase de tortura agonizante, sempre envolta numa ideia de desumanização. Mas não pode ser! Pelo contrário, devemos olhar para as prisões de maneira a que sejam um espaço de reabilitação, e reinserção de todos os seres humanos que por lá passam. Para quem possa achar que o caso norueguês, acima descrito, é uma maneira muito fofinha e branda de pensar o tema, é de dizer que as taxas de reincidência na Noruega são das mais baixas do mundo, cerca de 20%. É importante ter em consideração que, em países com realidades semelhantes à portuguesa, estima-se que em cada 10 pessoas que saem em liberdade, 6 voltam a reincidir.
Foi a estupefacção de um dos palestrantes da conferência, Al Crisci, com os porquês da reincidência, que em 2009, fez nascer The Clink, uma franquia de restaurantes localizados em zonas prisionais. Al Crisci dava formação de catering numa cadeia britânica, High Down, em Surrey, contudo não percebia o porquê de pessoas que tinham sido orientadas por si, após terem formação, voltavam para as cadeias. Contou, que ao questionar um preso, este lhe respondeu com uma pergunta, “Quem achas que lá fora dá emprego a alguém com cadastro?”.
Al Crisci decidiu fazer uma série de refeições na cadeia onde convidava empresários do ramo da hotelaria, com o intuito de que os presos mostrassem as suas mais valias e pudessem trocar contactos. A ideia foi um sucesso, sendo que mais tarde, em parceria com a direcção da cadeia abriu o primeiro The Clink, onde os empregados são a comunidade prisional que pretende trabalhar. O sucesso deste projecto é demonstrado mais uma vez pelas taxas de reincidência mais baixas, por quem passa por este programa de formação.
A troca de ideias não ficou apenas pela partilha de experiências pessoais, projectos de cariz meramente social, ou até de pendor empresarial. Houve ainda o testemunho do antigo ministro da justiça belga, o democrata cristão, Koen Geens, que falou sobre a implementação da ideia das casas de detenção na Bélgica, aludindo também à rejeição da privatização do sistema prisional.
As casas de detenção são uma ideia que a Associação Internacional RESCALED defende, sendo estas de pequena escala, diferenciadas e integradas na comunidade, contribuindo para sociedades sustentáveis, seguras e inclusivas. Exceptuando casos raros de alto risco, as pessoas em detenção vivem uma vida comunitária e assumem a responsabilidade pelas tarefas diárias e negociam as tensões que advêm da convivência com os outros. Sendo estas casas mais pequenas e com outro tipo de organização tem-se verificado um melhor desenvolvimento de relações, com vista à reinserção das pessoas na comunidade.
Por tudo isto, o Prison Insights é algo que deve continuar a repetir-se, não só pela perspectiva pessoal, mas acima de tudo pela necessidade colectiva de colocar os problemas criminais em debate, formulando novas soluções judiciais e sociais que contribuam significativamente para resolução de problemas, como é o caso da reinserção. Mais uma vez, as cadeias não podem ser esquecidas, e também não podem ser uma forma leve e rápida para onde despejamos vidas que nem sempre se conseguiram integrar da melhor forma na sociedade.
O erro apenas define a qualidade de ser Humano e, por isso, não nos pode diferenciar de um qualquer outro semelhante. Por agora, para esta discussão, o Prison Insights dá o seu contributo. Contudo, é óbvio que o tema não se esgota discutindo as cadeias e a reinserção de pessoas na sociedade, pois o crime, a sua existência e perpetuação passará indiscutivelmente pela discussão da sociedade que temos e a que queremos; a discussão do Sistema que queremos, e o que temos, que discrimina à nascença indivíduos, grupos, classes.
A reformulação da sociedade, e a construção de algo novo, e melhor, dá-se através de inúmeros pequenos passos, umas vezes para a frente, outras vezes para trás, numa perspectiva de dar, futuramente, um passo maior do que o recuo. Tudo isto é a evolução, palavra que, em passos continuados e cíclicos, tendentes a mudança, se costuma associar o prefixo re. Esperemos que seja para lá que caminhamos, cada vez mais Humanos, cada vez com mais humanos, em nosso redor e ao seu redor. Resta-nos assim contribuir, e continuar esperançosos num futuro, onde o Sol brilhe para todos nós… e de preferência sem quadradinhos.
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