Não tem a ver com a luta de igualdade salarial, pois não é abrir uma exeção a uma mulher, mas é abrir uma exceção a uma condição de saúde. Estamos a falar de um direito fundamental. Não se trata de incompatibilidades, mas de complementariedades.
de Maria Madalena Freire
A cronista Maria João Marques decidiu publicar no jornal Público um texto que explicava como querer igualdade salarial e uma licença menstrual seria simplesmente incompatível.
Para situar, o governo espanhol , no seu conselho de ministros, aprovou uma licença menstrual pensada para mulheres que sofrem com dores durante a menstruação, sendo esses dias pagos pelo Estado. Esta semana, o PAN avançou com uma medida também de licença menstrual que iria “até três dias de ausência ao trabalho por mês", sem "perda de quaisquer direitos, salvo quanto à retribuição”. Adicionalmente, teriam de apresentar um atestado médico. A proposta foi chumbada e deu início ao debate.
Há um lado do debate que concorda com a licença e até diz para serem as empresas a pagar, outros atribuem esse encargo ao Estado, e depois há o outro lado que diz que a adoção desta medida seria, mais uma vez, reforçar o patriarcado, colocando em causa tantos anos de luta pela igualdade salarial entre homens e mulheres. Olhemos, então, para este último lado, representado por Maria João Marques.
A autora escreve:
“para mim, confesso humildemente que me escapa a parte onde assumir que as mulheres são incapazes de trabalhar tantos dias por mês como um homem é um serviço à causa feminista.”
Logo aqui, a autora assume que uma licença que protege mulheres que sofram de dores insuportaveis devido à menstruação é insinuar que uma mulher, na generalidade, é incapaz de trabalhar tantos dias por mês como um homem. Não me parece que isso esteja escrito, inscrito, ou entre linhas na proposta da licença menstrual.
Quando alguém se encontra com gripe, ou até mesmo com COVID, não é uma pessoa que, na generalidade, é incapaz de trabalhar tanto como as outras. No entanto, quando se encontra doente, não terá as mesmas capacidades e tem direito a salvaguardar-se e cuidar da sua saúde em primeiro lugar. Penso eu.
O erro está em assumir que a licença menstrual é algo que está intimamente ligado a uma luta do sexo feminino quando é, por si só, uma luta para salvaguardar um direito à saúde individual, que acredito que seja básico e fundamental. Ninguém diz que as mulheres são incapazes de trabalhar tantos dias como os homens. Algumas mulheres precisam destes dias porque ficam incapacitadas de trabalhar por motivos de saúde menstrual
“E funcionalmente como vai ser? Uma juíza tem um julgamento agendado há meses e desmarca porque lhe apareceu o período? Uma professora fica em casa e deixa os alunos pendurados porque está em dia da menstruação abundante e, portanto, debilitada?”
Quanto à primeira questão, não me surge uma resolução óbvia, mas conto com os partidos políticos para encontrarem a melhor solução. No entanto, consigo responder que sim, indubitavelmente, às outras duas questões. Sim, a juíza desmarca, sim a professora deixa “os alunos pendurados”.
Denota-se uma enorme falta de sensibilidade, empatia e até mesmo se depreende que Maria João Marques não concebe a dimensão que as dores menstruais podem tomar em casos de doenças uterinas ou, até mesmo, em mulheres que têm o azar de ter dores mais agudas. São, por vezes, incapacitantes, de se ficar na cama, de não conseguir comer.
Gostava que a autora me respondesse: se a juíza se encontrasse com febre alta, tonturas, nauseas, não deveria desmarcar o julgamento? Ou teria de cumprir o seu trabalho e até, pela sua incapacidade, prejudicar o bom funcionamento do sistema judicial? Uma professora, que tem uma função tão importante, deveria pôr em causa não apenas a sua saúde, como também o ensino dos alunos só para marcar presença, mesmo totalmente incapactada de cumprir as suas funções de forma exímia?
“dando ideia de que a menstruação só por si é condição que limita a profissão, que metade das mulheres, pelas suas características físicas (menstruam), não conseguem cumprir os mesmos horários que um homem, bom, é deitar às urtigas toda a luta das últimas décadas pela igualdade efetiva de oportunidades no mercado de trabalho e pela igualdade salarial. Parabéns às envolvidas.”
Mais uma vez, de forma alguma a proposta contempla “quem deita sangue uma vez por mês, pode não trabalhar”. A proposta não indica que basta menstruar para não trabalhar. Nada tem a ver com a luta pela igualdade salarial, pois não é abrir uma exeção a uma mulher: é abrir uma exceção a uma condição de saúde. Estamos a falar de um direito fundamental.
“Uma ‘licença menstrual’ não serve somente de justificação para a discriminação profissional e salarial das mães. Pode ser usada para discriminar todas as mulheres. Afinal qualquer uma pode ser abrangida por esta medida, basta apresentar um atestado médico. É o patriarcado a fazer bingo – com a ajuda de feministas”
O argumento que a autora aqui apresenta é o seguinte: esta licença irá ser usada por sexistas e irá ajudá-los a confirmar os seus argumentos de que as mulheres não conseguem trabalhar tanto como os homens devido a estas excepções. Confirma que as mulheres não conseguem ser tão produtivas ou mais valias para as empresas.
Para a autora, em vez de se mudar estruturalmente a mentalidade sexista e educar no sentido correto, é preferível não haver uma medida que abranja problemas de saúde específicos do sexo feminino, pois só ajuda o patriarcado na sua luta. Penso que seja o equivalente a dizer “não vistas mini saia, senão é mais propício que te assediem”. Mais uma vez, eduquem os agressores, não a vítima.
“Porque, neste caso, têm razão. Uma mulher que, a cada mês, trabalha menos um a três dias que os colegas homens de facto não pode querer receber ordenado igual. Só aqui estão 5% a 15% de diferença salarial justificadíssima.”
De facto, se eu tiver um outro problema de saúde que me impeça de ir trabalhar 1 a 3 dias por mês também é justificável que eu não receba salário igual? Tenho duas escolhas: ou fico a trabalhar ou vou cuidar e tratar de mim nesses 1- 3 dias! Se optar pelo tratamento de uma condição que não controlo, não posso estar à espera de receber uma remuneração igualitária.
O último parágrafo é o único que roça o bom senso, porque de facto a autora tira tempo para olhar para a especificidade da licença proposta e sugere algumas alternativas para a questão: zoom ou compensar as horas de trabalho noutras vagas. Essencialmente, estas alternativas têm os seus problemas logísticos, como também, de direito do trabalho. Eu, submetida à minha condição de saúde, tenho de compensar pelas horas de trabalho que não cumpri, não por escolha, mas por uma condição.
Apelo, por último, à autora que, sendo mulher, acredito que possa não saber o que é ter dores menstruais incapacitantes, de acordo com o que escreveu. Porém, que não se circunscreva à sua experiência e, muito menos, tente abalar a causa feminista que tanto lutou para que as mulheres juntas tivessem salários dignos. Não se trata de incompatibilidades, mas sim de complementariedades. Licença menstrual e igualdade salarial? Ambas sim. E não é pedir muito. São mínimos.
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