De João Maria França Martins
Um filme de um realizador alemão, com um título inspirado numa música norte-americana e com a capital japonesa como pano de fundo. É este melting pot que é retratado no mais recente filme de Wim Wenders, nomeado para o Óscar de Melhor Filme Internacional.
Hiramaya é um homem que já passou a meia idade e tem na limpeza de casas de banho públicas o seu ganha-pão. Wenders dá a conhecer a rotina de um trabalhador invisível, com uma disciplina inabalável, mas com uma vida simples e harmoniosa e que encontra na música, na literatura e na fotografia a sua paixão pela vida.
Em Perfect Days, são os dias, na sua plenitude, que são perfeitos. Há um encanto na rotina, seja nos mais triviais momentos de higiene ou no desempenho das funções que o trabalho obriga. E esta beleza não reside numa oposição entre o tempo dito livre ou o tempo de trabalho, mas sim na maneira como o protagonista vê o mundo que o rodeia ao longo de todo o dia.
A arte de viver de Hiramaya é moldada pela relação da sua vida com a arte. É nesta troca que este indivíduo - ao que tudo indica marginalizado - se torna sujeito. Hiramaya é, acima de tudo, um cidadão, porque recorre à cultura, não como um entretenimento para o alienar da vida que leva, mas para ganhar mundo e para se encontrar no mundo.
Hiramaya é uma pessoa desprovida de todas as instituições coletivas. Sem família, amigos ou sindicato. Mas é na cultura que ele alcança uma lógica coletiva.
É a cultura que lhe dá a sensibilidade de compreender o outro e é através das suas referências culturais que ele interage com os outros. A cultura é, em Hiramaya, um ato de cidadania.
Ele recorda-nos, passando o pleonasmo, que a cultura nos cultiva. Dá-nos um estar no mundo, isto é, uma forma de sabermos ler o mundo e os outros, por isso, uma forma de sermos cidadãos.
Mais do que falar da grandeza das pequenas coisas, Wenders fala-nos da grandeza dos pequenos. E Hiramaya, cheio de humanidade e empatia, é a prova de que “ter mundo” não é ir aos melhores restaurantes, fazer muitas viagens e conhecer imensa gente.
Um sujeito com mundo é alguém que se sabe colocar no lugar do outro. E é isso que vemos em todas as interações de Hiramaya com as outras personagens.
Wenders poderia ter optado por fazer uma crítica à nossa condição pós-moderna, filha da perda das grandes narrativas e das grandes instituições coletivas. Mas não o fez.
Sem moralismos, Wenders relembra-nos do poder que a cultura tem para criar sujeitos que se distinguem de uma massa amorfa e, ao mesmo tempo, criar um chão comum capaz de os ligar.
A cultura, além de criadora de mundos, cria um mundo em comum capaz de aproximar mesmo o sujeito mais esquecido pela sociedade.
Perfect Days relembra-nos que recorremos à cultura porque precisamos dela enquanto seres humanos.
O poder da cultura está em ser uma linguagem universal que é acessível a todos. Até o homem que limpa casas de banho e nem sabe o que é o Spotify, é capaz de exercer a sua cidadania.
Porque a cultura é a arma que recorda que todos os dias podem ser perfeitos. Basta olhar para eles com olhos de ver.
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