Portugal tem um talento espetacular para evitar discutir a sua razão de ser, a sua consciência nacional e a forma como se imagina no futuro. Devia haver um desporto nacional à volta de varrer coisas para debaixo de tapetes, tal a apetência de qualquer pessoa, família, empresa ou instituição para evitar lidar com problemas fundamentais e erros brutais.
de João Maria Jonet
Há quem diga que somos um País triste porque perdemos tudo, há quem diga que somos assim porque sempre vivemos na miséria material. Dizem que somos maioritariamente de direita porque os portugueses são muito conservadores e católicos, outros dizem que somos muito de esquerda porque não temos apetite para o capitalismo (às vezes também por sermos católicos, às vezes só por sermos preguiçosos).
Umas vezes fomos fundados porque odiamos espanhóis, outras porque D. Afonso Henriques queria bater na mãe e ainda noutras porque queríamos matar mouros.
Somos um País de intriguistas e bufos porque somos pequenos e bairristas, ou então porque somos invejosos.
São os lugares-comuns que ouvimos quando tentamos perceber o sentido da existência nacional em qualquer snack-bar, porque no Parlamento ou nos partidos não apanhamos muitos a pensar nisto.
Nunca paramos para pensar que todas estas diferentes teorias sociológicas do tremoço podem ter uma origem comum. É o que eu chamo de Salazarismo cultural.
Uma ditadura que esteve 48 anos a tentar construir “Portugalidade” pesa obviamente na maneira como as gerações educadas e moldadas por ela ainda se sentem portuguesas e sentem Portugal.
“A História não se discute”, as “contas certas”, a “alegria da pobreza”, o “respeitinho é muito bonito” e o “País do futebol e do fado”: a nossa identidade está pejada de slogans do fascismo. Não quer dizer que tudo esteja mal por si só (não quero cancelar o Sporting), mas é importante reavaliarmos porque é que estas ideias interessaram a uma ditadura reacionária de extrema direita. Talvez assim se evitem verdades absolutas e certezas sobre a virtude de determinadas ações.
Será útil o fanatismo com as contas certas quando as condições são boas para pedir emprestado e temos os orçamentos de estado menos ambiciosos do mundo ocidental? Fará sentido estar satisfeito com um modelo de criação de riqueza que leva a que 43% das pessoas caiam na pobreza sem a ajuda do Estado? É bem visto que seja praticamente unânime que fomos bafejados pelos deuses do anti-racismo, que o nosso colonialismo foi bom e que ninguém sofre com as consequências dele hoje em dia? Vamos continuar a avaliar governos com a ajuda de vitórias no Euro e na Eurovisão? Queremos ter uma sociedade civil fraca e uma comunicação social submissa, sem pessoas com coragem para declarar sequer apoio político a alguém que não esteja no poder e com jornalistas que se deixam condicionar por relações pessoais com atores políticos?
Eu não quero um País assim. O Portugal que eu imagino tem respeito pela nossa cultura e pelas nossas tradições, mas não precisa de mitos salazarentos para estar confiante consigo próprio. Um Portugal que enterra a herança anticapitalista do Estado Novo e gera riqueza ao nível do resto da Europa. Um Portugal com políticos bem preparados e articulados que não falem com as pessoas como se estas fossem crianças, explicando que as opções que tomam não têm de ser dogmas. Um Portugal orgulhoso dos feitos na cultura ou no desporto, reconhecendo que eles acontecem apesar de políticas públicas desastrosas nessas áreas e não porque há algum mérito da governação, que deve parar de se aproveitar desses momentos. Um Portugal em que há a maturidade democrática para aceitar uma crítica e seriedade política para não fazer depender apoios do Estado de apoios eleitorais.
Se queremos um Portugal assim, temos de combater o salazarismo cultural em todos os cantinhos em que o encontrarmos. Porque quem teve por objetivo deixar o País na Idade Média durante meio século XX não merece ter tanto espaço na consciência coletiva de um País que ainda está a tentar entrar no século XXI.
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