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Seara: a história de um prédio abandonado em Lisboa

O dilema que opõe o direito à propriedade privada ao direito à habitação de pessoas que ficaram para trás.

Reportagem de João Moreira da Silva

Ilustração de Francisco Almeida


No dia 5 de Junho, a RTP noticiava que um “infantário devoluto transformado em centro de apoio apoia dezenas em Arroios”. Nesta notícia, voluntários da Seara – Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara - explicavam que o seu objetivo era criar um centro de dia que pudesse apoiar as necessidades das pessoas, que se agravaram com a quarentena. Na Seara, a população de rua podia encontrar um espaço para descansar, utilizar a internet, balneários ou casas-de-banho, lavar ou secar roupa e realizar refeições na cantina solidária.

Na segunda-feira, dia 8 de Junho, a imprensa portuguesa acordou com a notícia de que vários seguranças privados entraram pelo n. 9 do Largo de Santa Bárbara (Arroios) para despejar um grupo de pessoas que ocupava aquele prédio desde meados de Maio. Estas pessoas eram os voluntários e os alojados na Seara.


Perante esta intervenção de forças de segurança privada, enviadas pelos proprietários do edifício, cresceu um descontentamento generalizado entre os movimentos ativistas da região de Lisboa, que se mostraram solidários com a Seara e partiram para a ação. A juntar-se ao descontentamento criado pela intervenção de uma força de segurança privada e do alegado uso de força destas, no mesmo dia foi alegadamente publicado no Idealista (plataforma de publicitação de venda de imóveis) um anúncio de venda do edifício, com imagens simuladas do edifício e dos seus apartamentos já renovados, cada um pelo preço de 320 mil euros.


Às 9 da manhã de dia 8, cerca de 50 ativistas já se tinham juntado à frente do Centro para manifestar a sua solidariedade (número que aumentou ao longo do dia). Entre estes vários grupos ativistas, que marcaram presença nesta onda de solidariedade, contaram-se a Brigada Estudantil, o Climáximo, a Greve Climática Estudantil, a RDA 69, entre outros grupos.


Falámos com uma das representantes da Brigada Estudantil. De acordo com Inês Tecedeiro, uma das ativistas que marcou presença em Arroios no dia 8 de Junho, a Brigada Estudantil é “uma plataforma que procura agrupar vários coletivos com diferentes causas. Na sua base, tem maior atenção aos direitos dos estudantes. No entanto, a luta é interseccional e devemos ocupar outras causas para que os direitos de todos sejam ouvidos”. Seguindo este mote, os ativistas da Brigada reagiram rapidamente à notícia do despejo do edifício da Seara. No entanto, a representante da Brigada realça que “os verdadeiros autores deste movimento e quem merece o reconhecimento são os voluntários da Seara”.


Nas suas redes sociais, a Brigada Estudantil fez um post a explicar o que é a Seara e o que aconteceu para despoletar estes protestos. De acordo com a Brigada, a Seara “funcionava no prédio de um antigo infantário que, abandonado e devoluto há vários anos, foi ocupado em Maio por ativistas e voluntários com fim a ser transformado num centro de apoio à população em contextos precários e sem-abrigo. Aquando da ocupação, os voluntários procuraram entrar em contacto com os proprietários do edifício (sem sucesso) e procederam a informar a Câmara Municipal de Lisboa da ocupação do espaço.”.


Neste comunicado, a Brigada também descreve o que se passou no dia 8 de Junho: “pelas 5 horas da manhã, um grupo de seguranças privados a mandato dos proprietários entrou sem aviso, armado e de forma violenta e ilegal no edifício ocupado pelo Seara, com fim à realização de despejo e emparedamento do edifício. No decorrer deste processo foram expulsos, violentados e ameaçados diversos elementos do centro, assim como destruídos os espaços e utensílios montados pelos voluntários.”.


De acordo com os ativistas, a PSP foi chamada pelos voluntários da Seara para gerir a entrada dos seguranças privados no edifício. No entanto, “estes acabaram por compactuar com as ações dos proprietários do edifício, atuando de forma violenta – carga policial com força e gás pimenta – sobre os manifestantes que procuravam no exterior defender o edifício de forma pacífica.”, refere a Brigada, acrescentando que a PSP “permaneceu no local de forma excessiva e abusiva durante todo o resto do dia e até à saída pacífica dos ativistas que se encontravam no interior do edifício.”


No dia 9 de Junho, o edifício do centro de apoio começou a ser emparedado com tijolos por ordem do proprietário. De acordo com o Vereador dos Direitos Sociais da Câmara Municipal de Lisboa, Manuel Grilo, as pessoas que estavam nesse centro iriam pernoitar num local temporário. Em declarações ao Observador, o Vereador do Bloco de Esquerda afirmou que a tentativa forçada de despejar o centro de apoios foi ilegal porque em tempos de pandemia todos os despejos estão suspensos. No entanto, a posição do Vereador não foi consensual entre todos os manifestantes: algumas críticas caíram pelo facto de Manuel Grilo apenas ter aparecido no edifício na manhã do dia 8 e não ter ficado lá com os manifestantes.


As tensões entre a PSP e os ativistas mantiveram-se ao longo destes últimos dias. No dia 8, a Seara anunciava na sua página de Facebook que “neste momento existe um número grande de pessoas a defender pacificamente o espaço da Seara. Só queremos que a empresa privada que entrou e expulsou ilegalmente parte das pessoas se vá embora daqui. Ficaremos no local até haver uma ordem judicial legal de despejo. Resistimos de forma pacífica.” Mais tarde, divulgaram um vídeo dos confrontos entre os polícias e os manifestantes que protegiam o despejo. Inês Tecedeiro (Brigada Estudantil), alegou que a conduta da polícia foi desproporcional – a polícia “não estava a defender a lei, porque esta diz que ninguém podia ser despejado até Setembro. Os próprios habitantes chamaram a polícia para os ajudarem e foram-lhes negados os seus direitos.”. No final, deixou a nota de que hoje “não olhamos para os polícias da mesma forma que olhamos para médicos ou enfermeiros”, algo sobre o qual defende que devemos refletir.


Ontem, dia 9 de Junho, a Seara comunicou que reunirá em breve e dará novidades sobre os seus próximos passos, agradecendo a todos os que lutaram por si. O desafio de continuar a ajudar aqueles que não têm casa é maior sem um espaço físico para operar, mas o Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara não planeia desistir da sua causa.


O caso do Seara faz a sociedade portuguesa refletir sobre o dilema que opõe o direito à propriedade privada ao direito à habitação destas pessoas. No final do dia, qual é que se sobrepõe?

Face a esta questão, Inês Tecedeiro afirma que a posição da Brigada Estudantil é clara: “a propriedade privada nunca deve estar acima dos direitos dos cidadãos. Neste caso concreto, a Seara procurou contactar os responsáveis para informar da ocupação do prédio, mas não existia forma de os encontrar. A zona da Almirante Reis tem muitos sem-abrigo e um grupo de pessoas viu um edifício completamente desabitado e abandonado com condições para ajudar estas pessoas, em tempo de pandemia, para que tivessem onde comer, dormir, tomar banho. Neste caso, a ocupação foi legítima.” Entre os que viviam no edifício da Seara, obrigados a sair do edifício por volta das 22h de segunda-feira, contavam-se 3 trabalhadores da Uber Eats. “É um trabalho altamente precário”, afirmou a ativista estudantil, que diz que um dos grandes problemas é “verem as pessoas como números.”

A resposta de Inês e dos ativistas deste protesto não é consensual. Muitos verão a propriedade privada como um direito inviolável e impossível de ser “ultrapassado” por outros direitos, independentemente da sua gravidade. No entanto, raciocínios demasiados teóricos e presos à letra da lei podem ser perigosos e uma abordagem ao caso concreto será preferível. Não estamos apenas perante artigos da constituição, mas perante vidas humanas que merecem o respeito de serem tratadas como tal. Não se trata apenas de um grupo de pessoas que invadiu um prédio para lá viver, mas de uma situação excecional em que os ‘invasores’ utilizaram um prédio abandonado para ajudar pessoas em situações extremamente precárias, no meio da pandemia. Independentemente do valor da propriedade privada na nossa sociedade, não devemos pensar nos voluntários da Seara enquanto criminosos por terem procurado uma solução para ajudar os que ficaram para trás.


A prioridade dos órgãos públicos deve ser assegurar que todas as pessoas sem casa que dependiam da Seara não são mais uma vez deixadas ao abandono por culpa de discussões teóricas sobre o primado da propriedade privada.

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