Passaram sensivelmente três anos desde o início do Período de Dever Cívico para Salvação Nacional – em tempos obscuros denominado confinamento obrigatório – e tudo, finalmente, ia ficar bem.
Crónica de Francisco Costal
Estudante de Medicina, NOVA Medical School
O João levantou-se bem-disposto. Abriu as janelas e deparou-se, após uma primeira semana de Primavera bastante nublada, com o mais soalheiro dos dias de Março.
Ligou a televisão e ficou animado: o Instituto Nacional de Batalha contra o Maldito – outrora conhecido como Instituto Nacional de Saúde, num tempo em que ainda havia outras doenças – acabava de anunciar o início do ensaio em humanos da vacina contra o coronavírus. Passaram sensivelmente três anos desde o início do Período de Dever Cívico para Salvação Nacional – em tempos obscuros denominado confinamento obrigatório – e tudo, finalmente, ia ficar bem.
Aproveitou para ouvir o boletim diário da Direcção Geral de Segurança – anteriormente chamada Direcção Geral de Saúde – e ouviu que o número de infectados tinha aumentado 0,00003%. “São bons indicadores, mas teremos de lutar para que em Abril recuperemos a liberdade”, disse a Ministra da Saúde. Intuiu, com razão, que as Sugestões para Comportamento do Pacato Cidadão – em linguagem pré-Período de Dever Cívico para Salvação Nacional, medidas de contingência obrigatórias – seriam para manter. Sentiu-se triste, mas ao mesmo tempo descansado porque, pensou, “apesar de tudo, estamos seguros”.
Decidiu, depois de duas semanas em casa – o tempo de incubação do Maldito – ir à rua para o passeio higiénico quinzenal. Pegou nas chaves, despediu-se do Sistema de Comportamento Seguro – para os menos entendidos, câmara de vigilância – que o Governo havia instalado no hall de entrada do seu apartamento e colocou a Pulseira para Eliminação do Maldito – em tempos, pulseira electrónica. Sempre achou estranho este acesso do Estado à sua privacidade mas disseram-lhe que servia o seu próprio bem, o que sempre lhe descansava o espírito. Estava seguro, apesar de tudo, e sabia que devia estar agradecido a quem o permite viver assim.
Abriu a porta e estava calor, motivo suficiente para que alguns transeuntes se tivessem sentido na liberdade de andar na rua sem máscara. Como se sentia benévolo, não quis avisá-los, mas já não pôde tolerar a presença de um casal de mãos dadas. No terceiro ano do Período de Dever Cívico para Salvação Nacional isto constituía, evidentemente, um atentado à saúde de todos, pelo que o João pegou no telemóvel com as mãos enluvadas e chamou os Amigos da Saúde – Polícia, para os antiquados – denunciando o crime. Estes chegaram em poucos minutos, detendo eficaz e ordeiramente os meliantes. O rapaz, que tinha reparado no telemóvel ainda na mão do João, gritou-lhe “Bufo!”. Pareceu-lhe tudo aquilo uma injustiça, porque tanto ele como os Amigos da Saúde apenas estavam a agir em nome do bem de todos. É que, apesar de tudo, estavam mais seguros na esquadra que na rua, de mãos dadas.
Depois deste momento de tensão, continuou o seu passeio. Passou às portas do supermercado e regozijou por ver uma fila de indivíduos, todos de máscara, cumprindo a Distância Adequada para a Vida – o termo distanciamento social tinha desaparecido do dicionário e expandido de 2 para 10 metros – todos aplicando desinfectante a cada 5 minutos, como mandavam, e bem, as regras. Reparou, também que a papelaria se encontrava aberta, o que sempre lhe fazia alguma espécie: não sendo os Meios de Comunicação do Governo – chamavam-lhes, há muito tempo, jornais, e sempre foram vendidos em papelarias como aquela – indispensáveis à vida, não via nenhuma boa razão para se encontrar em funcionamento. Certa vez, confrontara a dona do estabelecimento com este facto, ao que ela retorquiu “Preciso de comer!”. Não percebera bem: tanto quanto soubesse, os Meios de Comunicação do Governo não eram comestíveis. De qualquer forma, não voltara a incomodar a dita senhora. Só queria que ela entendesse que, apesar de tudo, estaria melhor em casa.
Perdido neste tipo de pensamentos, continuou a sua ida à rua, até que se deparou com uma igreja. Lembrava-se ainda da Grande Revolta dos Malucos – no final do primeiro ano do Período de Dever Cívico para Salvação Nacional cunharam-na como Manifestação Católica – quando os ditos malucos protestaram para que lhes fosse devolvida a liberdade de culto. Estranhos tempos esses, em que ainda havia quem achasse que era essencial celebrar missa. Felizmente, depois disso, nunca mais ouvira falar dos malucos (nem, agora que faz um esforço de memória, de liberdade, o que constatou ser uma enorme coincidência). Apesar disso, tinha ficado tudo bem (ou ia ficar, já não sabia ao certo).
Numa das portas da igreja, estava uma fila de pessoas. Era, no entanto, uma fila diferente: meio atabalhoada, uns quantos sem máscara, todos com um aspecto sujo. Já tinha tomado conhecimento deste tipo de ajuntamentos. Estava na presença da Massa Anónima com Menos Comida – tempos houve em que tinham fome. Memorava, vagamente, os protestos da Massa Anónima quando o Estado não lhes permitiu mais trabalhar. Tinha a certeza, contudo, que os eventos não deviam estar relacionados, porque os Arautos da Verdade – pivots do telejornal – repetiam constantemente que todos íamos ficar bem devido à acção do Estado. Deu meia-volta para casa. Não conhecia ninguém da Massa Anónima e, no fim de contas, os seus familiares estavam alimentados e isso, apesar de tudo, era suficiente.
Chegou a casa, tirou a pulseira electrónica, a máscara e, no geral, toda a roupa do corpo. Pôs tudo num bidon a incinerar pelo Estado, de acordo com as normas da DGS, em frente à câmara que acenava como que dizendo que sim, o João é um bom cidadão. Ficou feliz. Nada o fazia sentir tão bem como a aprovação de quem manda.
Depois de almoço, sentado no sofá, ligou ao seu pai, que vivia numa Residência Segura para Idosos – comumente chamada, em dias remotos, lar de idosos. Já não o via desde o início do Período de Dever Cívico para Salvação Nacional e já se tinha habituado aos seus queixumes. “Quando é que me vens buscar?” era a pergunta mais frequente e que constantemente exasperava o João. O pai insistia em não perceber que, apesar de tudo, do afastamento, da distância, da frieza, estava mais seguro ali do que na sua casa! Nem sempre fora assim, evidentemente, mas o Desaparecimento Misterioso de Séniores das Residências Seguras para Idosos – houve uma altura em que o seu nome tinha sido morte ou incúria estatal, mas isso era apenas maledicência – na ordem dos 80% tinha permitido manter os sobreviventes em segurança.
Desligou e pegou no comando da TV. Queria ver um filme, um jogo de futebol, um concerto, algo que o distraísse da conversa semanal com o pai. Os filmes mais recentes, como de costume, remontavam à vida pré-Maldito, o futebol resumia-se a repetições de jogos antigos e concertos nem vê-los. Durante uns breves segundos teve o impulso de protestar contra a falta de tudo isto, mas voltou à razão e quase que teve vontade de se denunciar aos Amigos da Saúde. Não sabia ele, porventura, que era possível passar sem tudo isso? Afastou esses pensamentos malignos, já que era viável, em tempos de Maldito, estar vivo sem viver.
Recostou-se e fechou os olhos, agradado com a luz do Sol que entrava pela janela e lhe batia na cara. Lembrou a câmara, a pulseira, o distanciamento, a igreja vazia, a Massa Anónima em fila e a televisão sem nada para ver. Adormeceu. Nada o descansava mais que a segurança. Sim, apesar de tudo, estava seguro.
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