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Silêncio dos Inocentes

Atualizado: 15 de mar. de 2020


No meio de toda a vergonha, raiva e as muitas questões, sobra a docilidade e persistência comoventes dos perseguidos. Os mortos já ganharam: honra e glória para estes. Cada vez que a contagem aumenta e que voltamos a fechar os olhos, a derrota é nossa. Quando a luta aperta, este Ocidente tão cheio de si não passa afinal de um conjunto de povos cobardes, cínicos e, por isso, menos livres



Os cristãos cedo se habituaram à incompreensão do mundo e à perseguição por sociedades de todo o tipo. Afinal, Jesus Cristo, que alertou para este perigo, acabou por morrer crucificado, como também massacrados foram os seus seguidores, até aos nossos dias: o século XX foi aquele que deu mais mártires à Igreja Católica. Essa tendência, não só se manteve, como se agravou até à contemporaneidade, de forma bastante acentuada em nações maioritariamente muçulmanas como a Síria, o Afeganistão, a Nigéria e a Arábia Saudita, em ditaduras como a China e a Coreia do Norte, ou até em países democráticos como a França e o Chile, onde crescem os actos de vandalismo contra igrejas (o padre Jacques Hamel, por exemplo, foi degolado enquanto celebrava missa em Saint-Etienne-du-Rouvray). De acordo com os dados mais recentes, o Cristianismo foi mesmo a religião mais perseguida do mundo no ano de 2019.


Isto não deve assustar um cristão, salvaguardado pela promessa de Jesus (​Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa), nem sequer é motivo de espanto. Esta é a religião que proclamou sempre a dignidade igual de todos, homens ou mulheres, aos olhos de Deus e, por conseguinte, da lei. Foi também no Cristianismo que a Ciência encontrou o seu berço: se o mundo foi criado através da palavra e da razão, então pode ser alcançado e compreendido pela nossa razão, não sendo somente coisa sagrada, impassível de experimentação e modelação. Por fim, o Cristianismo mostrou ao Ocidente uma das suas verdades fundamentais: o homem é pessoa e, assim sendo, livre de se determinar, de tal forma que até hoje acreditamos que cada um tem direito à sua orientação política, opinião e religião.

Por isso, foi o objeto preferido da crueldade de tantos impérios, nações e regimes diferentes: uma religião que se opõe ao mandato totalitário do Estado sobre as pessoas, à escravatura ou à violência contra as mulheres como diminuição da dignidade de cada homem, às ordens irracionais de deuses irados, ou à atribuição de destinos de acordo com a origem de cada um, está condenada a que a violência se abata sobre si.

Aquilo que aparentemente mudou e que deveria envergonhar os países ocidentais e os seus líderes é a indiferença cada vez mais profunda a que são remetidos os milhares de crentes perseguidos e mortos pela sua Fé.

Nacionalistas indianos prendem e matam fiéis e ninguém solta uma lágrima. Homens são levados para campos de concentração na Coreia do Norte e não se ouve um clamor. Mulheres na Nigéria são mutiladas, violadas e assassinadas às mãos do Boko Haram e a indignação é mínima. No Sri Lanka, centenas são bombardeados cobardemente por celebrarem a ressurreição do seu Senhor e o mundo não se levanta contra a “cristofobia” nem, o que ainda é mais grave, se atreve a mencionar o nome de Jesus Cristo: neste caso, os pêsames foram enviados aos “adoradores da Páscoa”. No Iraque, o número de cristãos desceu de 1500000 (em 2003) para 202000 (em 2019): um autêntico genocídio que acontece perante os nossos olhos e torpor. 245 milhões de fiéis enfrentaram níveis altos, muito altos ou extremos de perseguição em 2019.

Foram mortos por amor a Cristo 4305 fiéis - sim, os governos da Terra assistiram impávidos e serenos à degola, evisceração e morte de quatro mil, trezentos e cinco dos seus. Ignorar estes números, como tem sido feito pelos governos e comunicação social dos mais diversos países, é ignorar tudo aquilo que estes mortos representam: é esquecer a liberdade conquistada em cada palmo de praia francesa em 1944 ou cada bocado de muro deitado abaixo em 1989, é cuspir na herança da vitória do Norte contra o Sul em 1865 e é enterrar a crença de que “todos os homens são criados iguais” e que têm o direito inalienável “à Vida, Liberdade e busca pela Felicidade”. Cada vez que baixamos a cabeça defronte dos assassinos, cada vez que os gritos dos mortos são abafados pelo nosso desprezo, cada vez que a queda de cristãos é menorizada pela nossa omissão, não estamos a negar apenas a Cristo: negamos a nossa própria identidade e o núcleo da nossa civilização.

Porquê? Porquê tanto desprezo, tibieza e insensibilidade perante a dor? Não encontrando nenhuma resposta fácil, julgo que tal se deva à inconveniência cada vez maior de nos vermos ao espelho e descobrirmos, enfim, que perdemos o sentido do Bem, da Verdade e da Liberdade, que buscamos uma sociedade cada vez mais asséptica onde não haja sangue nem sofrimento, e que não somos suficientemente corajosos para dar mão a quem ainda se bate por aquilo que devíamos.

No meio de toda a vergonha, raiva e as muitas questões, sobra a docilidade e persistência comoventes dos perseguidos. Os mortos já ganharam: honra e glória para estes. Cada vez que a contagem aumenta e que voltamos a fechar os olhos, a derrota é nossa. Quando a luta aperta, este Ocidente tão cheio de si não passa afinal de um conjunto de povos cobardes, cínicos e, por isso, menos livres.

Um dia, a História nos julgará por tudo o que escolhemos menosprezar e, finalmente, apresentaremos a nossa expiação às vítimas. Até lá, resta-nos reproduzir as palavras de Cristo, também ele violentado e suspenso na Cruz: perdoa-nos, Pai, porque não sabemos o que fazemos.



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