No meio de toda a vergonha, raiva e as muitas questões, sobra a docilidade e persistência comoventes dos perseguidos. Os mortos já ganharam: honra e glória para estes. Cada vez que a contagem aumenta e que voltamos a fechar os olhos, a derrota é nossa. Quando a luta aperta, este Ocidente tão cheio de si não passa afinal de um conjunto de povos cobardes, cínicos e, por isso, menos livres
por Francisco Costal
Os cristãos cedo se habituaram à incompreensão do mundo e à perseguição por sociedades de todo o tipo. Afinal, Jesus Cristo, que alertou para este perigo, acabou por morrer crucificado, como também massacrados foram os seus seguidores, até aos nossos dias: o século XX foi aquele que deu mais mártires à Igreja Católica. Essa tendência, não só se manteve, como se agravou até à contemporaneidade, de forma bastante acentuada em nações maioritariamente muçulmanas como a Síria, o Afeganistão, a Nigéria e a Arábia Saudita, em ditaduras como a China e a Coreia do Norte, ou até em países democráticos como a França e o Chile, onde crescem os actos de vandalismo contra igrejas (o padre Jacques Hamel, por exemplo, foi degolado enquanto celebrava missa em Saint-Etienne-du-Rouvray). De acordo com os dados mais recentes, o Cristianismo foi mesmo a religião mais perseguida do mundo no ano de 2019.
Isto não deve assustar um cristão, salvaguardado pela promessa de Jesus (Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e, mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha causa), nem sequer é motivo de espanto. Esta é a religião que proclamou sempre a dignidade igual de todos, homens ou mulheres, aos olhos de Deus e, por conseguinte, da lei. Foi também no Cristianismo que a Ciência encontrou o seu berço: se o mundo foi criado através da palavra e da razão, então pode ser alcançado e compreendido pela nossa razão, não sendo somente coisa sagrada, impassível de experimentação e modelação. Por fim, o Cristianismo mostrou ao Ocidente uma das suas verdades fundamentais: o homem é pessoa e, assim sendo, livre de se determinar, de tal forma que até hoje acreditamos que cada um tem direito à sua orientação política, opinião e religião.
Por isso, foi o objeto preferido da crueldade de tantos impérios, nações e regimes diferentes: uma religião que se opõe ao mandato totalitário do Estado sobre as pessoas, à escravatura ou à violência contra as mulheres como diminuição da dignidade de cada homem, às ordens irracionais de deuses irados, ou à atribuição de destinos de acordo com a origem de cada um, está condenada a que a violência se abata sobre si.
Aquilo que aparentemente mudou e que deveria envergonhar os países ocidentais e os seus líderes é a indiferença cada vez mais profunda a que são remetidos os milhares de crentes perseguidos e mortos pela sua Fé.
Nacionalistas indianos prendem e matam fiéis e ninguém solta uma lágrima. Homens são levados para campos de concentração na Coreia do Norte e não se ouve um clamor. Mulheres na Nigéria são mutiladas, violadas e assassinadas às mãos do Boko Haram e a indignação é mínima. No Sri Lanka, centenas são bombardeados cobardemente por celebrarem a ressurreição do seu Senhor e o mundo não se levanta contra a “cristofobia” nem, o que ainda é mais grave, se atreve a mencionar o nome de Jesus Cristo: neste caso, os pêsames foram enviados aos “adoradores da Páscoa”. No Iraque, o número de cristãos desceu de 1500000 (em 2003) para 202000 (em 2019): um autêntico genocídio que acontece perante os nossos olhos e torpor. 245 milhões de fiéis enfrentaram níveis altos, muito altos ou extremos de perseguição em 2019.
Foram mortos por amor a Cristo 4305 fiéis - sim, os governos da Terra assistiram impávidos e serenos à degola, evisceração e morte de quatro mil, trezentos e cinco dos seus. Ignorar estes números, como tem sido feito pelos governos e comunicação social dos mais diversos países, é ignorar tudo aquilo que estes mortos representam: é esquecer a liberdade conquistada em cada palmo de praia francesa em 1944 ou cada bocado de muro deitado abaixo em 1989, é cuspir na herança da vitória do Norte contra o Sul em 1865 e é enterrar a crença de que “todos os homens são criados iguais” e que têm o direito inalienável “à Vida, Liberdade e busca pela Felicidade”. Cada vez que baixamos a cabeça defronte dos assassinos, cada vez que os gritos dos mortos são abafados pelo nosso desprezo, cada vez que a queda de cristãos é menorizada pela nossa omissão, não estamos a negar apenas a Cristo: negamos a nossa própria identidade e o núcleo da nossa civilização.
Porquê? Porquê tanto desprezo, tibieza e insensibilidade perante a dor? Não encontrando nenhuma resposta fácil, julgo que tal se deva à inconveniência cada vez maior de nos vermos ao espelho e descobrirmos, enfim, que perdemos o sentido do Bem, da Verdade e da Liberdade, que buscamos uma sociedade cada vez mais asséptica onde não haja sangue nem sofrimento, e que não somos suficientemente corajosos para dar mão a quem ainda se bate por aquilo que devíamos.
No meio de toda a vergonha, raiva e as muitas questões, sobra a docilidade e persistência comoventes dos perseguidos. Os mortos já ganharam: honra e glória para estes. Cada vez que a contagem aumenta e que voltamos a fechar os olhos, a derrota é nossa. Quando a luta aperta, este Ocidente tão cheio de si não passa afinal de um conjunto de povos cobardes, cínicos e, por isso, menos livres.
Um dia, a História nos julgará por tudo o que escolhemos menosprezar e, finalmente, apresentaremos a nossa expiação às vítimas. Até lá, resta-nos reproduzir as palavras de Cristo, também ele violentado e suspenso na Cruz: perdoa-nos, Pai, porque não sabemos o que fazemos.
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