Há pouco mais de um mês que não vou à rua (sem ser para correr) e entrámos agora num novo período de 15 dias de Estado de Emergência, que muito possivelmente será renovado outra vez. À entrada para uma terceira quinzena de quarentena, que reflexões ficam do que já passou? Que utilidade têm para o que se avizinha?
Texto de Miguel Cruz
Estudante universitário de Direito, Universidade de Lisboa
A primeira e fundamental ideia que se retém deste primeiro mês de confinamento é, como bem escrevia a Sofia há dias, aqui no Crónico - “distanciamo-nos para nos protegermos a nós mesmos, mas principalmente aos outros (não só os vulneráveis, mas todos no geral). Haverá algo mais nobre do que isso?”. De facto, será este o momento indicado para responder novamente a Caim: sim, nós somos guardas dos nossos irmãos!
Dificilmente haverá melhor exemplo para explicar esta frase, tantas vezes difícil de desmistificar pelos seus militantes e outras tantas incompreendida pelos mais cépticos. Quem me conhece sabe que a cito com bastante frequência – talvez em demasia – , não o fazendo com qualquer conotação religiosa (ainda que se trata de um brocardo bíblico) razão pela qual este texto não contém elementos alergénicos, para os eventuais ateus presentes no leque de leitores do Crónico.
Faço-o, porque acredito que é a frase que melhor sintetiza aquilo que é o Estado Constitucional em que nos inserimos e porque os valores que lhe estão subjacentes são o critério que define – na primeira linha e em última instância – o conteúdo, e também a interpretação, da nossa Lei Fundamental. É aqui que nasce a Administração conformadora que substituiu a prestadora; é aqui que a democracia participativa substitui a representativa - com tudo o que isso significa sócio-juridicamente.
O sentido de responsabilidade inerente à afirmação, que dá nome ao presente texto, não é de agora, nem chegou por decreto: desde cedo, talvez assustados pelas notícias que chegavam do estrangeiro, fomos particularmente cumpridores no processo de endurecimento das medidas de contenção e muito tolerantes com as dificuldades próprias de uma mudança tão brusca. Fomo-lo com enorme respeito por todos os intervenientes: são chocantes as imagens que chegam de Espanha e que mostram actos de vandalismo e de segregação face a profissionais de saúde ou operadores de loja (“caixas”).
Neste condomínio de que todos fazemos parte, percebemos cedo que havia algo muito mais importante do que tudo: salvar Vidas. Fomos Guardas. E agora?
Agora, importará, certamente, colocar esse espírito solidário ao serviço das dificuldades que se antevêem e que nos convocam para continuarmos a ser Guardas. Ora vejamos:
Numa primeira fase, quando a retoma do normal quotidiano se fizer de forma progressiva, será importante a tolerância e a paz, perante os critérios que serão estabelecidos pelas autoridades competentes. Antevendo, já, a natural colisão entre Direitos Fundamentais, só o respeito pelos parâmetros estabelecidos pelas autoridades poderá evitar que o Estado não se esconda em razões de “saúde pública” para aumentar o controlo (nomeadamente através do telemóvel) sobre os seus cidadãos. Sobre essa capa, os Governos poderão, entre outras coisas, controlar a eficácia e nomeadamente a efectividade das reivindicações sociais e laborais (dos trabalhadores e do povo, feat Jerónimo de Sousa) que se avizinham nos próximos anos.
Atente-se à perigosidade do circunstancialismo em que, dada a complexidade da situação, será muito difícil que o argumento “razões de saúde pública” saia tão rapidamente do léxico comum, que deixe de ser usado pelo legislador para a ponderação e restrição de Direitos, Liberdades e Garantias de forma igualmente célere. Coloca-se aqui um problema sério à Democracia. Todavia, o ónus não está apenas do lado dos cidadãos: os Executivos terão na confiança que gerarem (ou não) através da partilha de dados científicos junto dos administrados, um instrumento muito mais eficaz de pacificação social.
É particularmente paradigmático, neste âmbito, o exemplo da lavagem das mãos pelas sociedades modernas: só no séc. XIX foi ganho o hábito de lavar as mãos, nomeadamente em ambiente hospitalar porque a comunidade científica expôs à sociedade as vantagens no combate aos microorganismos e a confiança gerada nessa informação institucionalizou o respeito pelos comandos emitidos pelas autoridades de saúde, nesse sentido.
Porém, importa constatar através de um estudo recente apresentado pelo ISCTE, que é na faixa etária mais jovem que se concentra a maior desconfiança face às instituições e aos dados estatísticos revelados ao longo desta pandemia.
Numa segunda fase, seremos convocados para a reconstrução económica do país. Nesta crise, ao contrário das anteriores, os normais motores de criação de riqueza estarão também eles praticamente todos a passar dificuldades e a quebra de confiança será generalizada a todos os agentes económicos.
Contudo, alertaria para duas vertentes “extra-financeiras” neste domínio: uma é que, apesar da Covid ser um vírus democrático, como qualquer crise económico-social, os seus efeitos serão geradores de desigualdade; outra, é que sob pena de “a cura ser pior que a doença”, alertar para uma realidade que está já em curso e que pode ser agravada pela deterioração das capacidades económicas dos cidadãos: o aumento do número de óbitos em relação à média dos anos precedentes (pós-crise 2008) - é que já por estes dias, os investigadores não estão a conseguir justificar um aumento do número de óbitos, mesmo com a possibilidade de muitas mortes por Covid não serem diagnosticadas.
Numa terceira fase, referiria a relação entre os povos e a natureza. E este tema, poderá ser abordado por duas vias: a primeira, prende-se com o reconhecimento do Sistema Terrestre como património Imaterial da Humanidade, o que permitiria resolver alguns conflitos de índole internacional relativos à destruição da biodiversidade; o segundo seria no âmbito do ordenamento do território e do planeamento urbanístico, uma vez que, mesmo que os chineses deixem de consumir pangolins, a falta de planificação da ocupação dos solos tem, numa completa desregulação na relação com a natureza, perpetuado a invasão das cidades por pragas potencialmente criadoras de situações semelhantes à que vivemos.
Uma última nota, esta bem mais actual e para induzir à reflexão em tempos de confinamento: importa questionar (a nós mesmos e à sociedade) se por estes dias não estaremos a repensar a hierarquia dos nossos próprios valores, individuais e colectivos. É que um país que tem caminhado, desde o início deste século, para uma relação de relatividade entre os diversos Direitos Fundamentais, nomeadamente através da lei (e não da Lei), muitas vezes com a conivência do próprio Tribunal Constitucional, não se permite a responder e justificar as ponderações que por estes dias vêm sendo feitas no combate a esta pandemia. Deixo neste âmbito uma interrogação especialmente acutilante de Luís Conraria, há dias no Expresso:
“Este isolamento não pode durar meses. Privar os nossos velhos de contactos físicos com filhos e netos não será uma condenação à morte; pelo menos imediata. Mas é impor-lhes uma pena de solidão cruel, capaz de minar a sua vontade de viver. Soubemos legalizar a eutanásia, respeitando a autonomia dos mais idosos e permitindo que muitos peçam assistência para morrer. Saibamos agora aceitar que a mesma autonomia pode levá-los a pesar os riscos e decidir que querem, apesar de tudo, estar com os netos. Conscientemente. E, nós, em consciência, queremos impedir isso?”
(veja-se a este propósito o texto do António Capela, aqui no Crónico).
Acrescentava: onde fica, sobretudo para os mais novos (tendencialmente assintomáticos) o fundamento para a não obrigatoriedade de algumas vacinas num país que impõem as restrições que têm sido preconizadas?
Estamos num tempo [e com muito tempo] em que nos surgem interrogações bastante pertinentes. Pelo estímulo do debate que geram é útil a sua partilha (com os nossos irmãos). Deixá-las-ei aqui pelo Crónico, nas próximas semanas. Mantenham-se patologicamente inconformados (e enclausurados).
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