Com a pandemia, e com todas as mortes direta e indiretamente com ela relacionadas, passámos, consciente ou inconscientemente, a desvalorizar a perda e a dor do outro. Tornámo-nos menos empáticos, mais individualistas.
Texto de Maria Francisca Gama
Após mais de um ano em que o telejornal abre, diariamente, com a contagem do número de mortes a lamentar, o findar da vida, a desgraça, o azar e a dor dos outros passou a ser uma constante, ainda que, paradoxalmente, nunca tenha parecido uma realidade tão distante de cada um de nós, pela forma como talvez já não nos toque (ou simplesmente pelo facto de já não existir o elemento excecional ou de surpresa).
Antes da pandemia (tempos que parecem cada vez mais longínquos e dificilmente recordáveis sem estupefação), a morte de um familiar de um colega, as notícias dadas pelos jornais, ou as histórias partilhadas no café, de que se soube que alguém acabou por falecer de doença prolongada ou acidente repentino, traziam, em todos os nós, aquele ar de consternação, de pena, tantas vezes de choque e indignação: “era tão novo”, “parecia ser tão importante para aqueles que o rodeavam”, “ainda tinha tanto para fazer”. A morte era mais séria, um momento mais solene, uma hora de maior sufoco, que ainda que não nos batesse à porta, nos fazia olhar para a janela com receio de que também por ali se pudesse imiscuir.
Depois, com a pandemia, e com todas as mortes direta e indiretamente com ela relacionadas, passámos, consciente ou inconscientemente, a desvalorizar a perda e a dor do outro, tornámo-nos menos empáticos, mais individualistas e com um desejo demasiado evidente de que aquilo que nos transmitissem não fosse exatamente assim: talvez não tenham morrido assim tantas pessoas, ou talvez as que morreram fossem todas já muito idosas, e, por isso, “faz parte da vida”. Fizemo-lo para pudermos continuar com as nossas vidas, para desculpabilizar alguns dos nossos atos e folias menos contidas neste período, e também, talvez, para nos protegermos. Para não nos deixarmos apoderar pelo medo e pela tristeza, e para que, dentro de tudo o que mudou, houvesse algo que permanecesse exatamente como sempre entendemos: “só acontecerá aos outros”.
Ontem, no dia 01 de junho de 2021, faleceu Carlos Ferreira, o homem que em 2020 subiu sozinho, com a bandeira nacional, a Avenida da Liberdade no 25 de Abril, segundo noticiou o Expresso. Recordo-me de, no dia seguinte, ter visto a sua imagem, sozinho, e ter pensado que aquele ato era dos poucos que, na altura, ainda que fosse reflexo da Liberdade, num tempo em que a vimos restringida, não punha em causa a liberdade do outro.
Depois, ao escrever este texto, e ainda que o parágrafo anterior possa parecer descontextualizado (dir-me-ão vocês se também o sentem como tal), pensei que ser livre não nos permite (ou ainda que permita, cada um faz o que quer com a sua liberdade!) alhearmo-nos ao outro, vivermos apenas e só para nós, para o que nos faz sentirmo-nos seguros, felizes e donos do nosso destino. Talvez a Liberdade e a coragem nos deva, ainda assim, manter a consciência da finitude, a empatia pelo outro e o medo, não fosse esse um dos impulsionadores do 25 de abril.
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