Se a leiteira merece ser pintada por Vermeer, porque não é o meu lavar a loiça digno de tela?
Crónica e seleção de telas de Isabel Maria Mónica
Neste tempo atípico que vivemos, brotam propostas para ocupar o nosso tempo.
Felizmente, a maior parte delas têm muita qualidade e convidam-nos a estipular objectivos físicos, culinários, musicais, etc. Se quisermos, podemos acabar a quarentena a fazer o pino, a cozinhar um risotto de trufas, a fazer um auto-retrato vanguardista ou conhecer a história da música medieval.
Existem, também, centenas de obras de arte disponíveis digitalmente. Numa destas experiências, maravilhei-me com a pintura de género, isto é com a pintura que depicta cenas rotineiras, do quotidiano. Desafiou-me a pôr ainda mais em prática algo que me ajuda a valorizar os meus dias: o olhar-me de fora, o emoldurar o meu quotidiano, como quem observa uma pintura.
Se a leiteira merece ser pintada por Vermeer, porque não é o meu lavar a loiça digno de tela? Pode parecer um pouco forçado, mas esta ideia mudou a minha maneira de viver as actividades aparentemente pouco charmosas do meu dia. Fez-me apreciar os contrastes das cores no cesto da roupa por secar, intensificadas quando o sol bate nelas; fez-me tomar consciência do meu bonito plano de fundo recheado de livros, enquanto estou em tele-trabalho, fez-me dar valor às flores no centro da mesa de jantar que acompanham os tons do vinho tinto. Todas estas cenas poderiam ser expressas a óleo, a acrílico, a aguarela, a tinta-da-China, a grafite, a qualquer técnica sobre qualquer suporte. Até mesmo os pais com olheiras, que ao computador embalam um filho com um pé e tentam entreter o outro, sem sucesso.
Quantas vezes, numa qualquer rede social, vemos uma fotografia de alguém a ler um livro enquanto bebe um chá, ou de uma família a jogar um jogo, e invejamos esse cenário? O problema é que, quando somos nós a ler calmamente um livro ou embrulhados na confusão de um jogo familiar, não temos a capacidade de exteriorização que nos possibilita perceber que somos nós agora a fotografia de que tanto tínhamos gostado ao fazer scroll, umas horas atrás.
Não é que esta consciencialização artística torne tudo fácil. Vai continuar a chover sobre a roupa por secar, vão continuar as tarefas maçadoras no trabalho e as dificuldades financeiras, as discussões à mesa não desaparecerão para sempre e os filhos continuarão imensamente requerentes de atenção. Mas tornar os nossos olhos artistas, capazes de penetrar o que sentimos e de apreciar pequenos pormenores, torna a vida mais bonita. E a Beleza nunca é dispensável.
Para terminar, deixo aqui algumas obras de arte, para ajudar a perceber que o belo pode existir na confusão familiar, no descanso isolado, nas tarefas laborais ou domésticas, nos recantos da nossa casa:
Atribuído a António Vieira (1590-1642)
Sagrada Família
óleo sobre tela
Fotografia: Vasco Monteiro (Cabral Moncada Leilões)
Escola Flamenga, séc. XVII
Interior com Nossa Senhora bordando
óleo sobre cobre
Fotografia: Vasco Monteiro (Cabral Moncada Leilões)
Johannes Vermeer (1632- 1675)
A Leiteira
óleo sobre tela
Rijksmuseum
Seymour Joseph Guy (1824–1910)
Story of Golden Locks
óleo sobre tela
Met Museum
Sir John Lavery (1856-1941)
The Chess Players
óleo sobre tela
Tate Museum
Carl Henrik Nordenberg (1857-1928)
The family idyll
oil on canvas
Fotografia: Dorotheum
Paul Gustav Fischer (1860-1934)
The birthday
óleo sobre tela
Colecção privada
Eduardo Viana (1881-1967)
Guitarra Minhota
óleo sobre tela
Museu Nacional de Arte Contemporânea
Francesco Galante (1884-1972)
The Little Housewife
Fotografia: Dorotheum
José de Almada Negreiros (1893-1970)
Reading Orpheu
técnica mista sobre papel
Colecção privada
Carlos Botelho (1899-1982)
Interior
óleo sobre cartão
Fundação Calouste Gulbenkian
Kim English (1957 - )
Morning paper
óleo sobre tela
Henrique Viola, Séc. XX
Cena de interior com casal e crianças
painel em marchetaria de diversas madeiras
Fotografia: Luís Sousa (Cabral Moncada Leilões)
Comments