Esta cultura deveria desmantelar a engenhosa máquina opressiva e racista, que não “vê cor” mesmo quando o filme foi realizado para reconhecer e redistribuir poder.
Crónica de Gonçalo Loureiro
Estudante de História, NOVA-FCSH
Parece surreal ser necessário um filme infantil para tornar o (há muito evidente) racismo em Portugal. Qualquer espectador facilmente percebe que peças cinematográficas não aparecem no vácuo; que, na realidade, filmes são produto de uma cultura, um contexto, acarretando uma série de símbolos e mensagens. “Soul: Uma Aventura com Alma” não é exceção.
O filme da Disney, com produção norte-americana, é uma peça histórica que afirma e reconhece a população negra, demasiadas vezes invisível e presa nas margens do tecido social. A dobragem do filme em Portugal foi feita em contracorrente por atores e atrizes brancas, pervertendo uma tentativa de visibilizar pessoas negras e reiterando a sua sistemática sub-representação nas esferas políticas, económicas e culturais da sociedade.
É desolador testemunhar esta oportunidade perdida, principalmente considerando o poder transformador e emancipatório da educação, feita também através da cultura - cultura esta que deveria desmantelar a engenhosa máquina opressiva e racista, que não “vê cor” mesmo quando o filme foi realizado para reconhecer e redistribuir poder. Neste caso, o reconhecimento, que é uma encenação de poder e privilégio, foi negado e branqueado sem medida, tentando passar despercebido.
Os comentários atrozes nos artigos que estão a noticiar a polémica do filme Soul evidenciam uma mentalidade negacionista, também ela racista, tentando sempre realçar um racismo inverso, sucessivamente descredibilizado pelas ciências sociais. Um de muitos trolls do facebook comentou na notícia do Observador que “a partir de agora, os Smurfs terão de ser dobrados por pessoais azuis.” Este tipo de intervenção, que é na sua essência uma agressão violenta, vem a confirmar uma tendência que desumaniza a população negra, equiparando seres humanos reais a personagens inanimadas e fictícias. A dignidade e condição humana é posta de lado e este distanciamento cria um sentimento legitimador, ainda que cobarde, que visa defender a escolha de atores e atrizes brancos para dobrarem um filme histórico com protagonistas negros.
É por tudo isto que saúdo a petição pública e online (assinada por Ana Sofia Martins, Dino D´Santiago, Mamadou Ba, Mayra Andrade, Nástio Mosquito, Pedro Coquenão e Sara Tavares),que reclama uma nova versão portuguesa do filme Soul. Apelo à assinatura da petição e mostro a minha solidariedade com todos e todas os atores e atrizes afrodescendentes. Não deixemos a História ser um caso consumado.
Aceda à petição através deste link:
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