na nossa sociedade a propriedade pesa sempre mais na balança, mesmo se no prato oposto estiver a dignidade humana. O julgamento final tende a cair sobre aqueles que reclamam um uso social para estes lugares esquecidos e que ousaram profanar essa coisa sacra e de valor inquestionável que é a propriedade.
Texto de Constança Cardoso
No início de 2018 encontrei na cidade onde cresci e de onde sempre quis fugir, um grupo de jovens que, como eu, não se revia nesta terra de grandes luxos: uma associação horizontal chamada Desassociada. Ao longo dos anos, esta tem-se esforçado por trazer uma dimensão mais popular e comunitária a Cascais, contrariar a sua pobre e unidimensional oferta cultural e as noites monótonas que por cá se vivem. Aprendi, ao entrar neste projecto, que em todo o lado há vozes dissonantes dispostas a lutar por mais e melhor.
Dentro do raio de acção que fomos construindo, não posso esconder um especial carinho pela nossa horta comunitária, que ficava num terreno que encontrámos ao abandono no vale da Amoreira. Apesar do desafio que representava a sua limpeza, sentimos que aquele lugar merecia mais do que ser deixado às silvas. Valeu a pena. À medida que íamos desmatando a pequena selva que lá reinava e limpando o entulho que quase parecia nascer da terra com as daninhas, o nosso “patinho feio” ia-se tornando num pequeno éden urbano.
Desde a primeira semente que deitámos à terra, fui aprendendo o valor da Comunidade, da autonomia e da autogestão. A nossa horta permitia-nos, nem que em parte, reduzir os intermediários que nos separam da nossa comida, embalando-a em plástico para ser vendida no supermercado. Permitia-nos aproveitar a sabedoria dos nossos vizinhos hortelãos, quase todos reformados e muitos deles cultivando neste vale desde os anos 80.Deste “vazio urbano” criámos um espaço de convívio aberto a todas onde fizemos concertos, festas, almoços e ações pedagógicas com crianças.
A Horta Comunitária Desassociada permitiu o empoderamento, ainda que passageiro, de cidadãos que haviam descoberto um novo lugar nesta Vila. Enfim, éramos tudo o que a propaganda da Câmara de Cascais, recente capital da juventude, dizia querer dos seus jovens.
O sonho foi breve e o despertar abrupto. Na manhã de 14 de Novembro de 2020 encontrámos reduzida a entulho a horta onde cultivámos durante três anos, onde plantámos dezenas de árvores e arbustos e onde investimos centenas de euros em equipamento, além de sangue e suor. Tinha sido destruída sem aviso pela Câmara Municipal de Cascais. Pior, hortas vizinhas com décadas de história sofreram o mesmo destino. Ainda assim, o presidente da CMC não teve pudor em mentir abertamente sobre o sucedido, não só nas redes sociais, como na própria assembleia municipal. Segundo este, não só todos os hortelãos haviam sido avisados atempadamente sobre a intervenção, como teriam celebrado a mesma. Contestámos com vários testemunhos em vídeo de locais que provam o contrário. Foram ignorados. Como se não bastasse, o Sr. presidente acusou publicamente a Desassociada de ser um grupo de perigosos radicais de esquerda com uma agenda política contra o próprio.
No mesmo dia enviámos um email à CMC pedindo esclarecimentos. Até hoje, não obtivemos resposta. Tudo o que recebemos da Câmara foram indirectas nas suas redes sociais. Esta justificava o sucedido como uma “limpeza” do terreno que supostamente havia sido pedida por denúncia anónima. Adiantaram, também, que o vale da Amoreira será “requalificado”, dando lugar a um “espaço verde” (não o era já?). Este objectivo corresponde, aliás, a um projecto (OP48) do orçamento participativo de 2019 que não fora eleito. Quando foi proposto, contactámos a responsável pelo OP48 expressando a nossa vontade de ser incluídos no mesmo.
Nunca obtivemos resposta.
Afinal, mesmo depois de décadas a fazer cumprir o dever da Câmara, limpar e cuidar daqueles terrenos, os hortelãos locais não mereciam estar incluídos no futuro do seu vale. Não pudemos fazer mais do que resgatar dos destroços o que não estava reduzido a cacos. Estava inteira e boa, a sementeira breve. A horta é que já não serve.
Voltar a este lugar é como visitar um morto sem direito a campa. Até hoje, o monte de entulho lá apodrece, em pleno inverno e em leito de cheia, à espera de ser levado pelo vento ou pela ribeira que ali corre. Esse lixo não preocupa a CMC. A limpeza a que se referiam era a de quem lá estava. Malhas que a Câmara tece.
Não posso deixar de ver um paralelo com caso da Seara, um projecto desenvolvido em plena pandemia, cujo objectivo era oferecer um espaço seguro para pessoas em situação de sem-abrigo. Escreve o próprio colectivo:
O seu destino foi ainda mais cruel que o das hortas do vale da Amoreira: ainda não nascera o sol do dia 8 de junho de 2020 quando foram despejados ilegalmente por seguranças privados em plena crise pandémica. Quem se juntou em frente ao prédio ao longo do dia para se manifestar pacificamente, foi recebido com gás lacrimogénio e bastonadas. Nenhuma solução foi dada para quem lá dormia. Ninguém foi responsabilizado pelo despejo ilegal.
Estas duas histórias não são casos isolados e não deviam passar despercebidas; por isso conto-as. O seu desfecho revela-nos que na nossa sociedade a propriedade pesa sempre mais na balança, mesmo se no prato oposto estiver a dignidade humana. O julgamento final tende a cair sobre aqueles que reclamam um uso social para estes lugares esquecidos e que ousaram profanar essa coisa sacra e de valor inquestionável que é a propriedade.
Tendo Portugal um artigo na sua constituição inteiramente dedicado ao direito à habitação, é inaceitável que se permita mais rapidamente a punição dos okupas do que a dos especuladores, fundos abutres e vistos gold que todos os anos empurram centenas de famílias para fora das suas cidades, ou mesmo para a rua. Mais rapidamente se faz das okupas um bote expiatório, do que se condena os municípios por deixarem as cidades à mercê da lei da selva, perdão, do mercado, e permitirem que os espaços verdes sejam colonizados por betão. Há que reconhecer que a própria existência destas iniciativas significa que, perante a crescente gentrificação, o Estado falhou em dar respostas às pessoas e que estas precisaram de as procurar sozinhas.
Não é radical o que se pede: segundo a própria Constituição da República, a construção privada deve estar ao serviço da população e o Estado deve “promover, em colaboração com as autarquias locais, a qualidade ambiental das povoações e da vida urbana, designadamente no plano arquitetónico e da proteção das zonas históricas”. A narrativa que a CMC adoptou, equiparando okupas e criminosos, só serve para desviar o olhar dos verdadeiros predadores das nossas cidades e fazer com que a luta seja entre os penúltimos e os últimos. Uma cidade que diga representar a sua população e que ainda para mais foi capital europeia de juventude não pode esmagar sem esclarecimentos uma iniciativa como a Horta Comunitária Desassociada.
Há relembrar aos municípios que, segundo este 65º artigo da Constituição, é seu dever respeitar a iniciativa popular, espontânea e verdadeiramente comunitária: “Para assegurar o direito à habitação, incumbe ao Estado incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respetivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução”.
Não é o Estado quem, sozinho, deve ditar o destino das nossas cidades. Cada um de nós deve ajudar a cuidar da sua comunidade, tendo, por isso, o direito e o dever de ocupar quando assim se justifica. A democracia também se constrói nas ruas, não a devemos deixar só para a classe política. Quanto a mim, vou guardando por agora as sementes que resgatámos da horta. Hão de servir para semear um amanhã mais justo.
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