À medida que os novos hábitos tomam conta do quotidiano e que vamos esquecendo a humanidade revelada em cada cara destapada, em cada toque desajeitado, em cada abraço fervoroso, convém relembrar essa época feliz em que o Homem não tinha medo do Homem.
Crónica de Francisco Costal
Estudante de Medicina, NOVA Medical School
Antes da pandemia que se abateu sobre o mundo, antes do céu cair sobre as nossas cabeças, antes do uso generalizado de máscaras, antes do distanciamento e do isolamento social, houve um tempo em que tudo foi verdadeiramente normal.
No último dia das nossas vidas, acordei cedo, saí de casa em passo apressado e não tive medo de entrar no autocarro sem um pano a cobrir a face, não me espantei com a proximidade entre outros como eu, nem senti como estranho aquele encosto despropositado na senhora de pé, ao meu lado. Nesse tempo, o pavor não era a norma. Vi o rosto dela a virar-se na minha direcção, e recordo agora como era bom poder observar as pessoas na sua totalidade, descobrir as suas emoções entre um franzir da testa e um esgar dos lábios.
Nessa manhã, saltei do transporte em Algés para encontrar o G. à minha espera. Ainda vivíamos no tempo em que o contacto e a proximidade não eram censurados. Trocámos um abraço à vista de todos, todos trocavam abraços à nossa vista. Nesse tempo que hoje começa a ser-nos peculiar, os encontros e desencontros da vida faziam-se através do calor humano, do passou-bem apertado, daquele passo que acelera ao ver o amigo que chega.
Queríamos passar tempo na costa de Lisboa e não hesitámos nos nossos intentos. Tempos houve em que podíamos ir a qualquer lado sem recearmos nada. A C. apanhou-nos na estação: nesse tempo, encher um carro de amigos e alegria não era um crime contra o fascismo sanitário, mas antes uma prova de generosidade. Fomos costa fora, rumo à praia, Benjamim como som de fundo. Vamos queimar gasóleo para a Marginal, e íamos, felizes por vermos outros como nós, a C. a pôr as mudanças, nós a quebrar o gelo.
Chegámos à praia e não tememos a enchente, porque naquele tempo o pulsar dos corações ainda se revelava através do barulho dos sítios, nos restaurantes, nas praias e nos bares, e que saudades temos hoje desse ruído, símbolo de copos cheios, dias cheios, corações cheios. Nessa tarde, a L. foi ter connosco a Carcavelos e não houve espaço para constrangimentos sociais, porque ainda podíamos ser livres nas amizades, nos gestos, no tacto. Vi amigos em confraternização, namorados em encontros discretos, famílias inteiras em piqueniques: nesse tempo em que não ousávamos trocar a liberdade por um pouco de segurança, tudo isto era possível.
Entre banhos na água fria, conversas prolongadas e renhidos jogos de cartas, o dia fez-se tarde, a tarde fez-se noite e fomos jantar a casa da L. Ficámos até altas horas da madrugada a ver um filme e a conversar, mas tudo isto se passou há muito tempo, quando ainda havia filmes para mostrar, quando festejar pela noite dentro não era errado aos olhos do mundo e quando as casas não eram santuários de assepsia e descontaminação.
No final do último dia das nossas vidas, despedimo-nos da L. e seguimos Marginal fora, agora no sentido contrário, e ainda não causava admiração ver um Polo azul a rasgar a estrada, vidros abertos e música em movimento, porque naquele tempo era legítimo rir, chorar, beijar, abraçar, ser-se humano quando quiséssemos. E mal sabíamos que aquele dia seria o último, aquela noite a derradeira, que o Benjamim acertou em cheio quando nos disse, num instante nocturno, que a sorte é quem vai ao leme. Bem sabia ele que a sede de controlo absoluto sob a existência seria a nossa perdição.
À medida que os novos hábitos tomam conta do quotidiano e que vamos esquecendo a humanidade revelada em cada cara destapada, em cada toque desajeitado, em cada abraço fervoroso, convém relembrar essa época feliz em que o Homem não tinha medo do Homem. Nesta era sombria, fria e escura, as memórias dos últimos dias solarengos, sinais de um passado que ainda pode ser recuperado, devem ser guardadas e acarinhadas.
Sempre que olho pela janela do comboio e vejo as ondas a embater nos pontões da Linha, cada vez que ouço o barulho a voltar à noite da capital, quando amigos e família vão retomando a verdadeira normalidade do toque e do abraço, creio num futuro novamente brilhante.
Toda a vez que encontro o G. para um abraço cúmplice, que a generosidade da C. acelera para nos levar a qualquer lugar, que a amabilidade da L. abre a porta de sua casa, tenho a segurança de que esses dias têm guardiões. Entre nós, ainda lembramos o que esse tempo glorioso, saudoso e memorável tem para nos ensinar: afinal, para sermos inteiramente humanos, terra firme só não vale, porto seguro é não ter medo.
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