Crónica de Sara Viana
Estudante de Direito na Universidade Católica do Porto
O crime emerge na sociedade todos os dias – assaltos, agressões, tráfico de droga. No entanto, o que causa mais impacto, pelo seu caráter repugnante, são os crimes contra as pessoas, dos quais a violência doméstica, o homicídio e, em especial, o homicídio qualificado, sendo os que causam especial impacto. Para um cidadão comum estes crimes assumem relevância tal, que chegam mesmo a abalar a consciência de segurança da ordem jurídica e da sociedade.
O ciclo é sempre o mesmo: crime noticiado na comunicação social, as pessoas enchem as caixas de comentários das redes sociais, condenando (e não só) alguém apenas com base nos factos apresentados, investigações são iniciadas, crime deixa de ser noticiado e, uns dias depois, já ninguém se lembra do que aconteceu. De certa forma relacionam-se as notícias com títulos como “homem condenado em pena suspensa por violência doméstica” que, mais uma vez, enchem as redes sociais com comentários ameaçadores e insultuosos (alguns até passam disso) quer quanto ao condenado, quer quanto a quem o condenou.
Surgem-me várias questões: como e quando é que estes “opinadores” se tornaram peritos para sentenciarem processos, alguns dos quais com graus de complexidade assinaláveis?
Tudo o que bastava para poder ser um especialista em Direito era comentar as notícias que aparecem nas redes sociais, atropelando regras processuais e descurando princípios básicos como in dúbio pro reu? Acredito que estas questões também assaltem os juízes que vêm as notas feitas ao seu trabalho. Realmente, como no futebol, onde os adeptos criticam tudo o que a sua equipa e o treinador fizeram de mal, o Direito também tem os seus treinadores de bancada.
É natural que a comunidade se ressinta quando tem conhecimento da prática de um crime – o sentimento de segurança e a confiança não são os mesmos, como seria esperado. As penas assumem precisamente um efeito de recuperação do ordenamento jurídico violado, caso contrário, não haveria lugar a qualquer punição de um infrator, já que esta seria, em parte, desnecessária. Saliente-se, contudo, que a função do Direito Penal, pelo menos em Portugal, não é apenas a proteção da sociedade contra o mal praticado, mas também a ressocialização do condenado. Por outras palavras, o objetivo não será simplesmente defender a sociedade, mas também instruir o condenado de que não deve praticar aquele crime e deve levar a sua vida de modo responsável, visando a sua reintegração na sociedade. Assim, em coerência com os princípios que norteiam o nosso Direito Penal, é lógico que não seja permitida a pena perpétua, nem tão pouco a pena de morte. A natureza humanista do nosso sistema está intrinsecamente ao afastamento destas soluções.
Quando a lei penal foi redigida e aprovada, evidentemente que foi tido em conta o impacto que o crime teria na sociedade, graduando as penas em função de qual seria a reação daquela. Ademais, o juiz, quando está a aplicar a lei, tem em consideração variadíssimos fatores – desconhecidos da maior parte da população – e não aplica uma pena no âmbito do seu poder discricionário. Aliás, a função do juiz é de graduar a pena dentro de uma moldura penal limitada pela culpa do agente – ninguém pode responder acima da sua culpa – e pela prevenção geral positiva – a pena mínima deve servir para colmatar a sensação de insegurança com que o crime violou o ordenamento jurídico. Seguir-se-ão critérios que levaram anos a serem apreendidos, tendo sempre como orientação a sua imparcialidade.
Não deverá a sociedade acreditar que tem mais conhecimento dos factos quem passou anos a preparar-se para exercer tais funções e tem contacto direto com o caso, ao invés de emitir juízos com base no que o canal X apresentou na Reportagem Especial que documenta “provas inéditas”. Se isso não acontece com um médico, já que ninguém lhe diz como fazer o seu trabalho, porque é que acontece com os profissionais do Direito? “Pena suspensa? O homem devia passar a vida na prisão”, leio incrédula. É verdade que há pessoas que cometem crimes graves e que por isso devam responder criminalmente, mas não sabemos dos factos que levaram à condenação naquela pena e, se não sabemos, talvez não devamos questionar tanto quem de forma informada o decidiu. De facto, já existem pessoas com a função de questionar essa decisão e ainda outras pessoas com a função de mudar a decisão, se a primeira não estiver correta, pelo que não será a sociedade no seu todo a dever fazê-lo. A justiça pelas próprias mãos (ou ação direta) não é permitida nem aceitável.
Perto de terminar a minha licenciatura sinto uma pressão acrescida em tentar que as pessoas entendam que nós estudamos para tomarmos as melhores decisões possíveis, mesmo que essas decisões não sejam entendidas no momento. As pessoas do ramo do Direito não são necessariamente visionárias, mas sabem o que estão a fazer, tal como um médico, um cientista ou um professor.
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