No Dia de Reflexão, importa reter a seguinte ideia: a conservação de um dia que difere dos restantes só continuará a fazer sentido caso estejamos devidamente incluídos na sua essência, o que se traduz neste não ser antagónico face aos dias que o antecedem.
Crónica de Afonso Madeira Alves
Estamos no fim de uma fase pandémica: falta muito pouco para o dia das eleições autárquicas. Chegam ao fim as arruadas de 100 metros entre aplausos e apupos, os hinos de campanha que plagiam refrões pop e o stock infinito de canetas. Muitas, demasiadas canetas. Numa campanha perfeita ainda por surgir, cuja acção parodie este histórico, veremos uma equipa de atletismo a percorrer as ruas do Tugão, que passando as canetas como testemunho, aviam eleitores ao som megafónico de um Zeca adaptado: “O que faz falta é votar na malta”. Fica a ideia.
No entanto, antes de chegar o momento de colocar o voto na urna, a lei exige que, durante um sábado inteiro, assumamos a posição que Rodin esculpiu — é Dia de Reflexão, um episódio de 24 horas em que Jack Bauer não está autorizado a pegar numa arma. Na maior das provas de como a Democracia não é a tirania da maioria, respeita-se a ínfima porção de cidadãos que ainda se mostram indecisos; para resolver o seu voto, o Estado atribui-lhes o direito, dever de outros, de não serem importunados com propaganda de última hora, seja nas ruas ou nos media. Pelos pais da Constituinte de 1976, temos prevista a necessidade de acalmar as hostes através de um dia limpo de controvérsias, mentiras ou manipulações. Porém, hoje avôs, os constitucionalistas contestam a lógica presente da sua criação; os tempos são outros, e entre as novas ânsias das redes sociais e do voto antecipado, o Dia de Reflexão tornou-se “perfeitamente dispensável”.
O tema, tanto este como outro, produz uma discussão cíclica que gira sempre à volta do mesmo. Aos textos que o metaforizam no controlo total do Estado paternalista sobre o indivíduo censurado e infantilizado, opõem-se crónicas-desabafo que suspiram com o quão agradável é o período de silêncio da política voraz, dando a entender que a vida são dois dias, e ambos deveriam ser de reflexão. Numa das críticas mais originais, João Pereira Coutinho defende que “não é o dia de reflexão que merece reforma; são todos os outros dias”.
Admita-se que, num país com abstenção estrutural a tudo o que comece a cheirar a política, estaremos perante um debate alimentado pelos que não conseguem passar um dia sem pensar nela. A inquietação não transparece como transversal à população. O cidadão comum, se interpelado num vox pop sobre o fim do Dia de Reflexão, poderá responder no mesmo registo do senhor a quem pediram que soletrasse “sidra”: disse que não sabia porque só bebia tinto. Em assunto tão inofensivo perante crises, não será pela sua cessação que o país andará para a frente ou ficará para trás. Na verdade, o Dia de Reflexão constitui uma realidade em diversos países com democracias consolidadas, diferindo nos seus moldes e respeito pela liberdade de expressão.
Em 2016, o Supremo Tribunal esloveno interveio na interpretação da lei eleitoral, suavizando o que até então seria considerado propaganda durante o período de reflexão na véspera das eleições. Tudo porque um cidadão de Maribor fora multado em 125 euros pela Inspecção-Geral da Administração Interna, após ter partilhado uma entrevista de um candidato a seu presidente de Câmara no Facebook, contendo o comentário “excelente entrevista, convido-vos a lerem-na”. Condenado em primeira instância pelo tribunal distrital, o caso foi tornado público pelos seus advogados, apelando à reversão do veredicto. Segundo o Supremo Tribunal, a noção de propaganda eleitoral estabelece “uma tentativa de influenciar um certo grupo de pessoas de forma planeada ou sistemática”, reservando-se as multas para quem é afecto à organização de uma qualquer campanha eleitoral. Com sucesso, a sanção foi retirada e a legislação flexibilizada, aproximando norma e liberdade. Assim, um mero cidadão esloveno, desprovido de quaisquer ligações partidárias, passou a ser efectivamente livre de recomendar o candidato que quiser aos seus amigos e familiares — tal acto fará parte do seu período de reflexão.
Por cá, é natural que a eficácia desta prática seja progressivamente contestada. A comunicação social, impedida de nos projectar política, reclamará de auto-censura; as redes sociais fintarão o dia através do algoritmo; e os que só olham a números, valendo-se de uma suposta validade científica, dirão que a prática é inútil e anti-democrática. Contudo, nenhum saberá considerar o proveito de mais um dia de campanha, nem as externalidades que daí poderão surgir. O que ganharemos em relação ao que temos? A mudança pela mudança seduz e mexer é quase sempre melhor do que estar parado. Quase sempre.
No Dia de Reflexão, importa reter a seguinte ideia: a conservação de um dia que difere dos restantes só continuará a fazer sentido caso estejamos devidamente incluídos na sua essência, o que se traduz neste não ser antagónico face aos dias que o antecedem. Não só em campanha, ou em conjunto, se expressa liberdade de pensamento. Serve este sábado para pensar em política, apenas se assim o desejarmos; serve para relembrar que, mesmo que a política esteja em tudo, há muito mais para além disso; serve para escolher entre ler, estudar, viver ou não fazer absolutamente nada disso. Serve para perceber que o dia seguinte será sempre especial. Caso já não sirva, ao acharem retrógrado, tudo bem. Apenas garantam que poderei continuar a passar o meu sábado descansado.
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