O que resta do colonialismo é isto. É levantarmos a mão quando perguntam quem é branco, por estarmos convictos de que somos dessa cor. A partir do momento em que somos de uma cor, assumimos uma identidade, aceitamos que nos encaixem numa categoria.
Lilian Thuram entra na sala, folha A4 branca na mão. Vai cumprimentando pessoas enquanto passa, chega finalmente ao pequeno palco de onde irá falar aos cerca de sessenta homens e mulheres que se reuniram ali para o ouvir. Faz-se silêncio. António Pinto Ribeiro coloca-lhe a primeira pergunta: «Senhor Lilian Thuram, o colonialismo acabou na Europa?».
Entro atrasada na aula de Teorias Sociológicas. Sento-me, cansada da corrida de três pisos que fiz para ali chegar. Está muito pouca gente na sala, somos vinte apenas. Tiro o caderno e uma caneta da mala, enquanto procuro perceber de que fala hoje o professor. Fala sobre a legitimação do discurso pelo homem branco. Oiço uma frase que me apresso a anotar no caderno para não me esquecer: «Quem é que tem legitimidade para produzir conhecimento acerca de grupos sociais que não o seu?».
Lilian Thuram responde que não, que o colonialismo ainda não acabou na Europa. Explica que cada um de nós, naquela sala, carrega em si a história colonialista. Carrega consigo esse peso e ele reflecte-se na maneira como olhamos uns para os outros, na maneira como interagimos uns com os outros. Por muito desagradável que seja ouvir isso, pensar sobre isso, é indispensável compreendermos o que resta dessa história. Cada um de nós tem várias identidades, identidades das quais nem se apercebe e que nos enclausuram em papéis sociais muito específicos. «Quando falo de identidade, estou a falar do momento em que cheguei, com nove anos, a Paris e me tornei negro. Tornei-me negro aos olhos dos outros.». Acrescenta que só se é negro em oposição a outrem, que também os seus colegas, quando ele chegou a Paris, se tornaram brancos no momento em que lhe disseram que ele era negro.
O professor fala muito depressa, entusiasma-se com a matéria. Reparo no ritmo frenético da suas palavras, nos olhares inquisidores que nos lança, procuro o equilíbrio entre tirar apontamentos e, ao mesmo tempo, conseguir perceber e interiorizar tudo o que oiço. Nova frase que não posso esquecer. Escrevo no caderno: «Os conceitos são também uma forma de dominação. Ajudam a construir definições e a produzir identidades.».
«Vou colocar aqui uma pergunta para ver se funciona. Quem aqui é branco ou branca, levante a mão.» Olho para o meu pai, estamos os dois sentados na sala. Percebo que levantar a mão não será um acto inocente, revelará qualquer coisa sobre mim, sobre a minha visão do mundo. Todos na sala pensaram o mesmo, Thuram tem de insistir: «Não sejam tímidos». Acabamos por levantar, um pouco receosos, a mão. «És branco?», pergunta Lilian Thuram a um rapaz na assistência. «Tens a certeza?». As pessoas riem-se, incluindo as que têm a mão no ar. «Então vem cá. Prestem muita atenção, porque este jovem vai descobrir algo que o poderá perturbar.».
O professor prossegue com a sua aula, diz-nos que, em finais do século XIX, a sociologia era uma ciência ao serviço do aparelho colonial. Recorda-nos os sociólogos que estudámos na cadeira. Durkheim, Weber, Marx e Simmel. A mulher de Max Weber, realça o professor, também era uma grande socióloga, publicou inúmeros trabalhos. Discutimos Bourdieu, Parsons e Goffman noutras cadeiras, mas o nome Marianne Weber não nos diz nada. Actualmente, a sociologia e o seu ensino estão ao serviço de quê? O professor diz e eu escrevo: “A verdade funciona como campo das lutas de poder.”.
“Que idade tens?”. O rapaz responde-lhe que tem catorze anos. “E há quanto tempo és branco?”. O rapaz repete: “Há catorze anos.”. Lilian Thuram pega na folha branca, ergue-a ao lado da cara do rapaz. “Conheces as cores?”. Resposta afirmativa. “De que cor é a folha?”. O rapaz responde que é branca. Thuram questiona a plateia, “Concordam que esta folha é branca?”. A sala responde que sim. Thuram dirige-se de novo ao rapaz, “És da mesma cor desta folha?”. O rapaz responde que não. Lilian Thuram põe-lhe amigavelmente a mão no ombro, diz-lhe: “Não percebo. Há catorze anos que dizes que és branco, mas agora dizes que já não és dessa cor. Então, de que cor és, afinal?”.
A aula está prestes a terminar. Em jeito de conclusão, o professor refere a descentralização dos meios de legitimação do poder, explica que as regras mudaram. As pessoas que dantes eram inquestionavelmente consideradas anti-racistas sentem agora essa posição ameaçada, o seu discurso é posto em causa. Surgiu a ideia de que é o próprio anti-racismo que cria o racismo. Escrevo no final da folha: «As bases tradicionais de legitimação do poder começam a ser dinamitadas.».
O rapaz volta para o seu lugar, Lilian Thuram retoma a sua palestra. O que resta do colonialismo é isto. É levantarmos a mão quando perguntam quem é branco, por estarmos convictos de que somos dessa cor. A partir do momento em que somos de uma cor, assumimos uma identidade, aceitamos que nos encaixem numa categoria. E, pouco a pouco, é-nos pedido que desempenhemos papéis, dizem-nos “o papel da mulher branca é este” e nós aceitamo-lo, reproduzimo-lo de geração em geração. “A cor da pele não é mais do que uma construção política, mas é através dela que se desenrolam as coisas, que se estabelecem os papéis e que se produzem as identidades.”.
Chego a casa cansada, pouso a mala com os cadernos no chão do quarto. Sento-me diante do espelho. Daqui a pouco, a minha irmã Francisca vai chegar e vai perguntar-me como é que correu o dia. Eu vou responder-lhe que as aulas correram bem e que, de tarde, estive a estudar com a Leonor. Ela vai perguntar quem é a Leonor. Eu não vou responder que é a minha amiga negra que conheci na faculdade. Também não gostava que a Leonor dissesse que eu sou a sua amiga branca. Eu sou muito mais do que isso. Eu nem sequer sou branca e a Leonor nem sequer é negra. Vou ficar sentada diante do espelho e pensar no que que define realmente a Leonor. Aliás, vou ficar sentada diante do espelho e pensar no que define realmente cada pessoa. Ainda não sei como olhar para tudo isto, não sei sequer como olhar ainda para mim própria. Em Sociologia, falamos da importância dos conceitos para classificar e ordenar a realidade, de forma a podermos analisá-la e compreendê-la. Não me parece justo fazer isso com a Leonor, compreendê-la será muito mais difícil do que isso. Tal como Lilian Thuram, acredito que existimos através dos outros. Cada um de nós carrega consigo muitas identidades, algumas delas feridas. Para compreender a Leonor, vou ter de conhecer todas as suas identidades com as feridas que contêm e deixá-la falar sobre elas. Ainda assim, ela permanecerá sempre um mistério para mim. Talvez seja esse o encanto das relações que estabelecemos uns com os outros.
Cecília Faria
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