Se a dignidade não admite escolha, dirá aquele que quer escolher a morte medicamente assistida: mas afinal, quem é que decide sobre o meu destino? A resposta a dar é esta: ninguém. A vida não admite disposição, nem pelo próprio.
Crónica de João Santiago Neves
Jurista e advogado estagiário
A votação final global do diploma que prevê a morte medicamente assistida já ocorreu, tendo o diploma sido aprovado na Assembleia da República.
Ora, se é de morte que falamos, podemos certamente recordar aquele comentário coloquial, mas não desprovido de verdade: “Nestas ocasiões não há muitas palavras a dizer...”. Por isso, aqui ficam apenas duas: Dignidade e Liberdade.
Por um lado, dignidade. E não se trata de uma dignidade qualquer, mas sim da dignidade da pessoa humana. Esta dignidade é absoluta, uma vez que é inata e, por consequência, inviolável e irrenunciável; e objectiva, porque não é passível de um juízo circunstancial de índole política ou social. Não se pretende nestas breves linhas tecer considerações sobre a sujeição à lei constitucional dos direitos ditos humanos, nem tão pouco sobre a sua natureza (ir)renunciável e (in)violável, mas em benefício do rigor devemos sobre esta matéria ser peremptórios: a aprovação da eutanásia “ viola, em termos flagrantes, o primeiro dos direitos fundamentais do ser humano – o direito à vida – e a garantia da sua inviolabilidade (artigo 24.º); viola, igualmente, o direito à integridade pessoal e a garantia da sua inviolabilidade (artigo 25.º) e, bem assim, a dignidade da pessoa humana, no contexto de uma sociedade solidária e de um Estado de direito baseado no respeito e garantia dos direitos e liberdades fundamentais (artigos 1.º, 2.º, 9.º, 12.º, 13.º e 18.º); viola, ainda, o direito à protecção da saúde - não só o dever de a defender e promover, como também as inerentes vinculações do Estado em implementar o acesso de todos os cidadãos aos cuidados médicos, bem como o dever genérico de protecção dos mais frágeis (artigo 64.º).”, conforme Declaração Pública Conjunta de Professores Catedráticos de Direito Público sobre a despenalização e legalização da eutanásia e do suicídio assistido, de 15 de Junho de 2020.
Voltemos, rapidamente, à dignidade. Há poucos dias terminei o livro de Viktor Frankl, O Homem em Busca de um Sentido, onde é narrada a sobrevivência deste psicoterapeuta no campo de concentração de Auschwitz. O leitor poderá discordar, e com razão, mas parece-me que a tese proposta é a de que, pelo menos ab initio, não devemos procurar um sentido - é precisamente essa procura que nos impede de o encontrar. Sem querer ser redutor, o livro permite concluir que se pode manter a dignidade humana num campo de concentração. Na morte, e no sofrimento aí patente, é possível testemunhar a verdadeira dignidade humana, pela forma como se aceita o destino e o sofrimento que daí advenha. A dificuldade inerente a esta lúcida dignidade, levou Dostoiévski, como bem recorda Frankl, a testemunhar “Há uma só coisa que eu temo: não ser digno dos meus sofrimentos.” Ora, este medo não é abstracto - trata-se do medo concreto de não aceitar os possíveis e inesperados sofrimentos vindouros.
Apesar de a dignidade supor a aceitação, esta não se confunde com a ausência de desespero ou de emoção. De facto, todos estes sentimentos estão e devem estar presentes, e é nessa exacta medida que se apresenta de novo a dignidade: na possibilidade de atribuir a essa emoção e desespero o único sentido possível, a sua inevitável existência. Encontrar um sentido na emoção que resulta do sofrimento levou Espinoza a afirmar que “A emoção, que constitui sofrimento, deixa de ser sofrimento logo que formamos uma ideia clara e distinta a seu respeito”. Se todos somos confrontados com o destino, a dignidade alcançada por meio do sofrimento é uma escolha, e nesse sentido passa invariavelmente pela liberdade.
Liberdade. A escolha a que se alude acima pode ser enganadora, uma vez que a escolha pela dignidade acima descrita, não encontra na eutanásia uma resposta. Responder à vida com a morte, e nessa medida tecer um juízo de dignidade, seria admitir que há vidas e mortes dignas ou indignas. Neste âmbito, a dignidade é aquela de que goza qualquer pessoa, pelo que não deve ser aferida pela lei, pela sociedade ou mesmo pelo próprio. A lei, a sociedade e o próprio não podem escolher sobre a vida.
Chegados aqui, se a dignidade não admite escolha, dirá aquele que quer escolher a morte medicamente assistida: mas afinal, quem é que decide sobre o meu destino? A resposta a dar é esta: ninguém. A vida não admite disposição, nem pelo próprio.
E se a morte assistida corresponder à sua expressa e esclarecida vontade? A resposta é a mesma: ninguém. A titularidade não encontra, aqui, paralelo na liberdade.
E se o médico estiver em sintonia com a vontade do doente? Ninguém, porque sobre a dignidade da vida não é admitido um exercício de disposição pelo próprio, nem tão pouco pode ser imposto a outro, mesmo que este aceite, na medida em que ninguém é proprietário da dignidade, sua ou alheia.
Em conclusão, a dignidade da pessoa humana é absoluta porque a pessoa é fim em si mesma. A liberdade não se traduz numa capacidade de escolha, mas sim numa determinação. Sim, a liberdade determina-nos. E que melhor determinação há que não seja dignidade? De tal modo que, na iminência da morte e no prelúdio do sofrimento, possamos afirmar como Sartre (ainda que sem o sentido que este pretendia alcançar) : “o homem está condenado a ser livre e digno, e ainda bem que assim é!”. No dia de hoje, marcado pela aprovação da eutanásia, à semelhança do que ocorreu em Auschwitz, e voltando a Frankl, acabamos como esse autor propõe:
“Por isso, estejamos atentos – e atentos num duplo sentido: Desde Auschwitz sabemos de que o Homem é capaz. E desde Hiroshima sabemos o que está em jogo”
João, que bom ler-te! bj Vão