O meu grande problema passa então pelo uso da religião de forma distorcida e conveniente, afastando-a aqui mas exaltando-a ali. Efetivamente, André Ventura defende no seu programa eleitoral medidas que vão de acordo com os interesses de católicos, alguns que também eu procuro proteger. Mas olhando para a bigger picture descubro ainda mais com as quais não posso, em pleno século XXI, concordar.
Crónica de Inês Serra
Estudante de Direito, NOVA
Apesar de normalmente me insurgir contra a quantidade de tempo de antena dedicado a este tópico, decidi juntar-me também e deixar por escrito a minha crítica neste livro de reclamações que é a comunicação social.
Não escrevo aqui hoje para dar uma lição de catequese. Antes, escrevo enquanto católica que, apesar de não ver uma direita consolidada no país, reconhece que um voto de desespero (ou de confiança, depende do ponto de vista) no Chega não será a solução. Curiosamente foi precisamente durante uma missa que encontrei este meu pensamento, reconstruído de forma parabólica. Correndo o risco de perder leitores com o que se segue, acho necessário transcrever aqui a passagem que, pelo menos a meu ver, será capaz de ilustrar bem o ponto de partida do meu raciocínio, e que reforçou (agora de um ponto de vista religioso, porque parece ser um factor que “atrai” muitos eleitores) a ideia de que pôr a cruz em André Ventura não é certamente a melhor opção.
Propôs também a seguinte parábola a alguns que confiavam na sua própria justiça e desprezavam os outros: Subiram dois homens ao templo para orar: um fariseu e outro publicano. O fariseu, posto em pé, orava dentro de si desta forma: Ó Deus, graças te dou que não sou como os demais homens, que são ladrões, injustos, adúlteros, nem ainda como este publicano; jejuo duas vezes por semana e dou o dízimo de tudo quanto ganho. O publicano, porém, estando a alguma distância, não ousava nem ainda levantar os olhos ao céu, mas batia no peito, dizendo: Ó Deus, sê propício a mim pecador. Digo-vos que este desceu justificado para sua casa, e não aquele; porque todo o que se exalta, será humilhado; mas o que se humilha, será exaltado.
Lucas 18:9-14
É fácil cair no erro de nos vermos como Senhores da razão, o que não se resume a assuntos de fé. E, sinceramente, enquanto ficar apenas no pensamento, não me cabe a mim julgar. O que, a meu ver, se torna problemático, é quando a religião é usada como arma política para atrair eleitores, justificando com esta motivações e ideias que são em parte ou totalmente repudiadas por si. A personificação de uma ferramenta para chegar ao poder.
A Deus não importa o status, a “cor” ou o feitio de cada um. Como é que a algum católico poderá importar? Importa sim a sua fé e a materialização desta no nosso dia-a-dia. A compaixão pelo próximo não pressupõe que se escolha por quem sentir misericórdia, mas sim que o façamos transversalmente. A letra da Palavra é tão importante quanto o seu espírito, porque sem um não existe o outro, nem podem em momento algum ser dissociados.
Questiono-me por fim. Diria que o ensinamento que mais ouvi durante estes meus 19 anos enquanto católica foi “ama o próximo como a ti mesmo”, e acredito não ser a única. Tal ideia, ainda que fortemente presente no catolicismo, rompe com as costuras do divino e transforma-se numa máxima pela qual “orientamos” o nosso comportamento diário. Tendo em conta o duplo “reforço de ideia” a que os católicos estão sujeitos, de onde virá então, esta onda de ódio contra os portugueses “de segunda”, portugueses “de mal”, que tanto apoquentam André Ventura, também ele abertamente católico? Esta reflexão não deve ser vista como uma desconstrução e descredibilização da Fé deste político – repito, não estou aqui para dar uma lição de catequese, muito menos me caberia a mim fazer tal apreciação. O caminho que pretendo seguir é outro.
Para além do paradoxo com que me deparei ao questionar tal natureza comportamental, tive outro momento de realização. Não será certamente uma descoberta digna ao ponto de constar nos Lusíadas, nem tão única assim. Mas, efetivamente, a instrumentalização da religião está de tal modo sofisticada e escondida que me parece que muitos nem dão por isso.
O meu grande problema passa então pelo uso da religião de forma distorcida e conveniente, afastando-a aqui mas exaltando-a ali. Efetivamente, André Ventura defende no seu programa eleitoral medidas que vão de acordo com os interesses de católicos, alguns que também eu procuro proteger. Mas olhando para a “bigger picture” descubro ainda mais com as quais não posso, em pleno século XXI, concordar. Não considero isto um “mal menor”. Muito pelo contrário, considero uma ameaça maior. Tanto à democracia como à Igreja. Este comportamento de ofensa (pouco vocacionado a ideias e muito dirigido aos próprios deputados), de superioridade e, por vezes, de gozo, que esteve presente ao longo de todos os debates presidenciais, soube-me pouco a respeito pelo próximo. Mas quem sabe, posso estar apenas a ver mal.
É exatamente neste ponto, que vejo a maior e mais evidente falha. A conclusão a que consigo chegar não é outra que não a de que religião foi usada como ponto-chave e fonte de inspiração para determinadas medidas, mas completamente ignorada para outras. Mas como muitas vezes ouvi, não existe ser “meio católico”. Não poderei algum dia conceber esta contradição inerente que ecoa no Chega e nas suas posições. De um lado misericórdia pela vida, mas do outro a desvalorização da vida de tantos outros. Identificação enquanto católicos e, ao mesmo tempo, desprezo pelo próximo. É aqui que encontro este “uso” da religião, que dá jeito para ganhar votos, mas que não é transversal a todo o programa.
Falta-lhe o espírito, mas sobra em letra. Só vejo excessos, tanta religião em certas ocasiões e tão pouco “dar a outra face” noutras. No entanto, já me disseram algumas vezes que vejo mal. Mas não consigo deixar de desconfiar de tanto extremismo, de tanta separação e de tanta promessa de um “despertar de Portugal”. Tanta promessa de um “V Império”. De facto, sou católica, um tanto conservadora e de direita, mas acima de tudo acredito numa democracia, pelo que não vejo, nem nunca poderei ver em Ventura uma representação que dignifique as 3 simultaneamente. Considerem-me conservadora do avesso, com questões existenciais, ou até falsificada, mas na verdade apenas acredito em moderação.
Agora que penso, já me disseram muitas vezes que vejo mal. “Deus me perdoe” se for este o caso.
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