Penso não ter havido até hoje uma geração com um tipo de humor tão próprio que não fosse acessível a quem dela não faz parte. É normal que se ache o humor típico da nossa geração mais engraçado que o das outras, mas sempre foi possível entender as piadas características de cada uma, independentemente de nos rirmos delas ou não. Pela primeira vez, isso parece estar a ser posto em causa.
de Constança Cardoso
Quantas vezes não consegui evitar rir-me de um meme à frente dos meus pais, que, então, me perguntam qual é a piada e dou por mim a questionar-me se tento explicar porque é que me estou a rir de uma uva a recuperar da cirurgia? Até podia acontecer acharem a imagem cómica, mas penso que a verdadeira piada se iria perder na explicação. A “essência” do meme, se é que é permitida uma expressão tão pomposa, não é o que aconteceu à uva por si: neste caso, é mais o facto de este ter surgido de forma totalmente aleatória, as proporções absurdas que tomou e, posteriormente, as suas incontáveis mutações.
Este tipo de humor contrasta radicalmente com os memes que os nossos familiares mais velhos publicam e que se resumem, muitas vezes, a:
1) Ridicularizar causas sociais / identidade alheia
2) Piadas machistas/homofóbicas
3) “os jovens de hoje em dia são preguiçosos/fracos”
4) “ditadura do politicamente correcto”
Estes são quase sempre acompanhados de uma estética de cartoon pouco criativa.
Aqui, temos um bom exemplo do primeiro tipo de meme boomer (relativo à geração que nasceu entre 1946 e 1964).
Isto, claro, não significa que todas as pessoas nascidas entre 1946 e 1964 façam este tipo de piadas ou que estas sejam exclusivas desta geração. A imagem acima chegou até mim pois foi partilhada no Facebook por um conhecido meu de vinte e poucos anos. Ainda assim, há normalmente um enorme abismo entre o típico humor boomer e o humor tanto dos millennials (1981-1996) como da chamada Geração Z (1995 -2012).
O que distingue este novo tipo de comédia, que faz lembrar uma espécie de dadaísmo contemporâneo, não é apenas o seu carácter absurdo e aleatório. Em primeiro lugar, o contexto da sua génese é totalmente novo. Os memes, criados por esta nova “escola humorística”, só puderam surgir dado o desenvolvimento da internet e das redes sociais, coisa que nenhuma geração anterior pôde experienciar na sua juventude. Foi-se criando uma linguagem universal entre jovens de todo o mundo activos na internet, onde os memes se vão tornando cada vez menos inteligíveis a quem está de fora.
Para além disso, o facto de o inglês se ter tornado uma língua franca em quase todo o mundo (pelo menos entre os mais jovens) dá proporções a este fenómeno que não teriam sido possíveis antes. Estes são, a meu ver, os mais importantes factores para se entender o que torna a cultura do meme tão única.
Em segundo lugar, e principalmente no que toca à Gen Z, parece haver uma maior sensibilidade inscrita no humor para problemas sociais e ecológicos, sendo comum os memes assumirem um discurso contestatário - não é por acaso que uma das figuras mais conhecidas da mais nova geração é a Greta Thunberg. Claro que há também uma boa parte dos chamados “nativos digitais” desta geração, cujos memes são altamente reacionários. Um caso extremo serão os incels, por exemplo. Contudo, são uma minoria em comparação.
Embora muitos boomers sejam peritos em fazer piadas sobre o quão preguiçosos ou falhados são os mais jovens, estes ignoram o facto de terem crescido num contexto de prosperidade económica, em que era possível tornarem-se independentes aos 18 anos. Em contrapartida, a geração mais nova cresceu em tempos de austeridade, tendo tido a infância marcada por uma crise global e por cada vez mais frequentes desastres ecológicos.
No fundo, a Gen Z, da qual faço parte, cresceu no que parecia ser a iminência do fim do mundo. O famoso “ok boomer” serve precisamente para desarmar o típico discurso condescendente das gerações mais velhas. No entanto, ao contrário do que muitos dizem, este não me parece ser um termo discriminatório. Ser boomer, mais uma vez, é sobretudo uma questão de mentalidade.
Uma das coisas que mais me atrai no humor típico da minha geração é que este refuta a ideia tão tipicamente boomer do “agora já não se pode brincar com nada” ou “vivemos na ditadura do politicamente correcto”. A Gen Z mostra-nos que não precisamos de recorrer a clichês cansados para fazer comédia. Afinal, os estereótipos são apenas uma parte microscópica do espectro de coisas infinitas com que se pode brincar. Se há quem responda frustrado que “já não se pode brincar com nada” ao ser chamado à atenção por fazer uma piada misógina, à partida, estamos perante alguém cuja capacidade criativa é bastante limitada.
A Gen Z mostra-nos que “humor negro” não tem que ser sinónimo de piadas baseadas em discriminação e preconceito. O humor negro da minha geração tem mais a ver com a consciência de que o mundo, tal como o conhecemos, tem os seus dias contados.
Embora os millennials tardios tenham sido a primeira geração a crescer com a internet, a Geração Z foi a primeira a crescer com uma Internet já totalmente desenvolvida. Desde muito cedo, fomos constantemente bombardeados com conteúdo explicitamente violento e notícias aterradoras sobre o fim do mundo, deixando-nos com uma ideia de futuro altamente distorcida.
Tudo parece aleatório e surreal e, por vezes, até as manchetes dos jornais parecem shitposts. O nosso absurdismo não só é um reflexo disso como serve para lidar com um mundo de incertezas. Não é à toa que alguns dos temas mais recorrentes dos memes zoomer (relativos à Geração Z) sejam o apocalipse, o suicídio/doenças mentais, o tardo-capitalismo ou uma hipotética terceira guerra mundial.
Ser bombardeado com informação, desde muito jovens, tem um efeito tanto de dormência como de grande ansiedade, uma vez que somos constantemente recordados da nossa impotência perante o caos que nos espera. Por isso, aprendemos a usar o humor como ferramenta para lidar com o absurdo dos nossos tempos. Nada parece ter muito sentido e o nosso sentido de humor reflete a sensação de herdar um mundo perdido. Por isso, criámos uma espécie de niilismo absurdista, cheio de purpurinas e referências pop.
A internet global dá proporções incomensuráveis a este fenómeno.
Pela primeira vez na História, há uma geração inteira que interage diariamente, desde todos os cantos do mundo, através deste tipo de comunicação totalmente nova, que são os memes. Creio que este é um dos fenómenos mais interessantes da contemporaneidade: o facto de haver uma geração inteira que acompanha e participa, em tempo real, na constante metamorfose da sua linguagem própria. Tal como a linguagem tradicional, a cultura do meme parece agir já como um organismo vivo, que se adapta e evolui consoante o contexto.
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Queria apenas deixar claro que, quando me refiro ao humor zoomer, falo da cultura do meme que se restringe à comunidade online. Falar por uma geração inteira é um exercício necessariamente falacioso e a ilustração que fiz pressupõe que falo de jovens com uma presença significativa na internet, particularmente nas redes sociais. Bem sei que não é o caso de toda a Gen Z e que muitos não se irão rever neste texto. Contudo, uma parte muito significativa representa os chamados “nativos digitais”, que, todos os dias, constroem este novo humor cada vez menos acessível às gerações anteriores.
Falamos de camadas e camadas de significado, construídas ao longo de décadas de vivência na internet e referências comuns que se foram canonizando. Muitas vezes, explicar um meme a um desentendido significa explicar 10 anos de internet e incontáveis referências em diálogo umas com as outras.
Um bom exemplo foi a morte do Vine (R.I.P.), uma plataforma onde se criavam vídeos de poucos segundos, quase sempre cómicos. Este foi um acontecimento que imortalizou certos memes que continuam a ser reapropriados de forma altamente criativa, sendo que só poderão ser entendidos por quem acompanhou a fase em que a plataforma esteve activa.
Bem sei que nem toda a gente vê estas novas mutações humorísticas com bons olhos. Há quem se preocupe com a “estupidificação” da comédia; há quem ache que a nossa geração está perdida; há quem ache irritante a exclusividade do humor; há quem se assuste com o seu conteúdo niilista e há quem simplesmente não entenda a piada.
Independentemente do tipo de humor de cada um, parece-me inegável que este é um fenómeno fascinante e um processo de criatividade cultural único e que merece reflexão. Prevejo que a cultura do meme se tornará um grande caso de estudo no futuro e mal posso esperar para ver como evoluirá nas próximas décadas. Isto é, se não morrermos todos, entretanto.
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