Encerrada a quinta edição da Web Summit, considerada a maior conferência tecnológica a nível europeu e a quarta maior a nível hormonal, impõe-se uma breve reflexão sobre um evento que tem sido acolhido por Lisboa como se de um turista ávido de bom peixe fresco se tratasse.
de Afonso Madeira Alves
Legend, filme de fantasia dos anos 80 que ficou célebre pela última aparição dos dentes pré-Cientologia de Tom Cruise, conta-nos a história da criatura satânica Lord of Darkness, um presumível contribuinte agastado com a EDP, cujo propósito de vida consiste na eliminação da luz do sol, para que possa dar lugar ao seu reinado de novos tempos, dominados pela consequente escuridão. De forma a atingir os seus objectivos maléfico-económicos, Darkness ordena a Blix, o seu goblin de serviço, que mate os dois últimos unicórnios que guardam a Luz, instruindo-o a trazer-lhe os cornos singulares como prova do crime. Blix aceita ir à caça para a floresta, mas não hesita em pedir um esclarecimento ao seu patrão:
“Lord, o que é um unicórnio?”
Furioso com tamanha ignorância, Darkness rasga a camisola de gola alta e responde-lhe:
“É uma startup avaliada em mais de mil milhões de dólares, seu idiota!”.
Na arte de bem receber, a cidade joga como poucas com os seus visitantes, oferecendo-lhes abraços calorosos, preços especulativos e um ou outro grito pinguço de quem os prefere mandar para as suas terras. Ainda que certos preceitos ideológicos transpareçam — alguns dos quais afastaram sorrateiramente Marine Le Pen de marcar presença na edição de 2018 — a relação que foi celebrada com os promotores da cimeira não é surpreendente.
Com contrato (confidencial) renovado até 2028, a Web Summit dá-nos a oportunidade de mostrar ao mundo não aquilo de que realmente somos feitos, mas aquilo que tanto nos apraz ser: descobridores lusitanos sustentados por dinheiro estrangeiro.
Se esta constatação se assemelha a uma crítica, tal se poderá dever ao longo histórico nacional de apego oportunista ao financiamento externo — o “tio rico”, como apelidou o economista Steen Jakobsen num recente diagnóstico ao nosso país concedido ao Observador.
“Já podemos ir ao banco?” - continuamos a perguntar sem pudor.
Assim, compreende-se que um país periférico, que hoje encara o “orgulhosamente sós” como política de sepultura, estabeleça um grau de abertura que o torne menos pobre, menos bruto e com cada vez melhores representantes no inglês. Contudo, a dependência de tal estratégia leva a que um português que revele os podres da nação a quem não é de cá, corra o risco de cometer um crime de lesa-pátria e de ser apontado como principal responsável pela subida das taxas de juro. Desta forma, o palco central de uma conferência internacional torna-se o lugar ideal para encenar uma apresentação que será forçosamente tão estimulante, patriota e ilusória quanto um filme de fantasia.
Na sessão de abertura, Carlos Moedas, novo presidente da Câmara Municipal de Lisboa e do clube de fãs de Mazzucato, narrou o seu sonho de arquitectar uma Fábrica de Unicórnios, uma incubadora de empreendedorismo que impulsionará a nova capital mundial da inovação no fabrico de negócios milionários. Segundo o próprio, a cidade é a única que “liga os detalhes com os sonhos”, deduzindo-se que tal ligação não depende do uso de transportes públicos. Falando para uma audiência que possui vastos portefólios de criptomoedas, a actuação do novo mayor foi de eficácia irrepreensível: vendeu uma cidade que não existe, enquanto omitiu aquela que persiste.
Pela fuga a um possível viés, importa notar que, logo de seguida, o atual ministro da economia repetiu praticamente o mesmo discurso, diferenciado apenas pela voz de barítono e pelo uso desajustado de uma gravata num evento dedicado à tecnologia.
A verdade é que, por muito que nos custe, de nada vale tentar cancelar a Web Summit, mesmo desconfiando acerca da utilidade de um contributo que o seu élan infantil e desregulado parece gerar. Num último estudo realizado por professores da Universidade do Minho, as conclusões retiradas apontam para que o retorno exceda a despesa pública associada, ainda que difícil de quantificar. Logo, se a percepção geral é favorável, somos levados a crer que todo o aparato é proveitoso porque atrai milhares de milhões de euros em novos investimentos e empregos para um dos países da União Europeia que menos investe em investigação e desenvolvimento. Considere-se isto uma estratégia para transformar o tecido empresarial de um país paroquial e aturemos o carácter perverso que o desenvolvimento tecnológico também proporciona. Mais ainda, mal se resolva o problema do 5G, construamos um muro das lamentações com rede hotspot, onde todos os empreendedores possam suplicar pela transformação das suas startups em unicórnios. Aos milhares de azarados que investiram tudo numa ideia falida, restará ir trabalhar para as empresas dos seus colegas mais sortudos, caso as instalações continuem por cá.
Não será assim tão complicado tornar Lisboa num hub tecnológico. É uma visão que se vende facilmente, sendo já um benchmark sustentado: a cidade é segura, cosmopolita e pratica salários baix... e tem um clima agradável. Chegados até aqui, perante uma sociedade com o elevador social avariado, conceda-se a oportunidade a entrepreneurs de resolverem o problema através de uma app. Se a escolha está entre não fazer nada ou fazer castelos no ar, a segunda alternativa sempre afasta a ideia de inacção.
Steve Martin, histórico comediante norte-americano, revela na sua biografia que, com o passar do tempo, aprendeu que “não há mal em enchermo-nos de ilusões entre momentos de inspiração”. Dizem que é este espírito empreendedor que terão para nos mostrar. No entanto, momentos antes da partida, nómadas digitais de todo o mundo perguntar-se-ão:
“Lord, o que é Lisboa?”
De facto, Lisboa é um unicórnio. Para vós, uma criatura coroada com uma só espiral, como se uma antena alcançasse os céus; para os demais, uma mula de cone de gelado na cabeça que divide o seu estábulo com outras espécies para conseguir pagar uma renda de mil milhões de euros.
Talvez não saibamos sonhar; quiçá, nunca nos tenham ensinado a fazê-lo. E como o poderiam, se também não o sabiam?
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