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Vacina do Medo

Prevalece o instinto de procurar a máscara e sorrimos para nós mesmos, com o desfasamento em relação ao mundo no qual mais tempo passámos, a despeito dos episódios recentes. Há, então, os que avançam e os que o instinto encolhe infundadamente. Ainda olhamos o outro, o desconhecido, como um potencial inimigo; ainda olhamos o outro, o desconhecido, como um potencial assassino.

Crónica de André Faria Silva

Para a rubrica Aspas Aspas


Os cientistas descobrem-na enfim — a vacina do vírus. A recepção é calorosa, surge a esperança de restabelecer a ordem natural das coisas, de devolver normalidade a este mundo ao qual acabámos por nos acostumar, onde uma agulha talvez salve e um abraço talvez mate.


Por agora, pede-se paciência aos velhos, que se abeiram já dos filhos e netos, braços estendidos e passos arrastados de pés moldados aos chinelos, zombies afáveis dada a sede de afectos. Há quem ceda, há quem finque o pé e diga: ainda não acabou. E, dentro destes últimos, encontraremos ainda assim quem abale para o café outrora do costume, preparado para abraçar e beijar os amigos — ainda não velhos —, há tempo demais por abraçar e beijar.


Por sorte, a vacina é acessível a todos e todos a tomam, embora alguns, a contragosto, se deixem picar somente por receio de consequências legais. Mesmo cientes de que, do outro lado da barricada, se encontra quem haja dedicado anos a estudar a matéria, os antivacinas não se consideram menores em sabedoria. Afinal, despenderam horas na Universidade da Vida do século XXI — a Universidade da Internet. Seja em fóruns, no Youtube, em redes sociais, todos se documentaram devidamente. Concluído o curso, em lugar de se dedicarem a teses aborrecidas — e repletas de aspectos dispensáveis como referências bibliográficas, aos quais nem o menino Jesus acharia interesse —, constroem artigos científicos sucintos, até dois parágrafos, que publicam por vários pontos da maior universidade do mundo. Porém, os governantes — ou pelo menos a maioria —, cândidos que são, fiam-se ainda nas instituições clássicas e rejeitam fontes de conhecimento progressistas, como caixas de comentários de jornais.


Uns meses transcorridos, pode tudo voltar ao que era, pode tudo voltar ao antigo normal e reaparece o toque para quem tenha em quem tocar: mão aberta, mão fechada, cachaço, festa, abraço. Amigos e família recuperam o tempo pandémico. Agendam-se cafés, almoços, jantares; e os estabelecimentos enchem-se de mesas onde pouca importância se liga ao que se come ou se bebe, porque tudo segue acompanhado de alegria. Contudo, eis a quebra, quando para uma ida ao quarto de banho se torna necessário atravessar uma sala mais cheia do que nos habituámos a ver. Prevalece o instinto de procurar a máscara e sorrimos para nós mesmos, com o desfasamento em relação ao mundo no qual mais tempo passámos, a despeito dos episódios recentes. Há, então, os que avançam e os que o instinto encolhe infundadamente. Ainda olhamos o outro, o desconhecido, como um potencial inimigo; ainda olhamos o outro, o desconhecido, como um potencial assassino.


Muitos permanecem em casa, se já não amedrontados, acostumados à vida em estado de medo. Aprenderam a estar fechados, aprenderam a estar sozinhos. Houve até quem aprendesse a reparar o seu próprio computador, a sua própria máquina de lavar, dispensando, portanto, os técnicos no intuito de, auto-suficientes, poderem impedir qualquer forasteiro de adentrar as suas fronteiras. Assim, sós, salva-os moralmente a falta de orgulho na solidão.


O antigo normal não chega — pelo menos não já. A despeito dos cientistas a terem descoberto enfim — a vacina do vírus —, continua inaudita a vacina capaz de reverter estes instintos que, malgrado recém-adquiridos, se inculcaram em nós.





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