Vamos ao teatro? #4
de Henrique Rainho
Caríssimos, numa destas tardes que passou, estava a folhear um livro intitulado “Prostituição Masculina em Lisboa” - consiste no registo que um par de jornalistas fez das suas expedições, nas ruas frequentadas por homens que se vestiam de mulher, porque queriam viver como uma mulher ou, apenas, para conseguirem mais clientela no negócio que unia todos os que os jornalistas ali encontraram: a prostituição.
Trata-se de um livro de 1982, com histórias que remontam, pelo menos, a 1979, pelo que é de esperar que se vejam perspetivas e termos que hoje estão, se não totalmente, um pouco desajustados. Contudo, os testemunhos são reais hoje, eram na altura, e continuarão a ser - é com base nesse trabalho de registo de testemunhos que vos posso recomendar este livro e não tanto pelas eventuais divagações sobre temas como a homossexualidade, a transexualidade, etc.
E o que tem isto a ver com ir ao teatro? Metade das vezes não tem nada - paciência -, mas há momentos em que poderá ter tudo. E aqui temos a formulação mais aborrecida de todos os tempos: tanto pode ser tudo, como pode ser nada, mas não faz dela menos verdadeira.
Peguei neste livro porque achei que seria um ponto de partida interessante para uma peça, para um poema - enfim, para uma potencial criação.
E foi aqui que me apercebi de mais um poder e de uma razão para ir ao teatro: tão simplesmente ouvir uma história. Quando foi a última vez que tiraram meia hora, uma hora, ou até mais, para vos contarem uma história? Eu não me lembro da última vez que isto aconteceu comigo sem que eu estivesse a assistir a um espetáculo.
Cada um é uma bênção para mim, e será uma experiência única para cada um dos espectadores.
Com este potencial que cada espetáculo tem para impactar um público, pensei em dar voz às histórias do livro que vos sugiro: histórias de pessoas que foram importunadas, violentadas e violadas pela simples razão de quererem viver de maneira diferente. Por se sentirem diferentes daquilo que um mundo tão recentemente saído de uma ditadura tinha estipulado como correto e, por isso, ainda muito imaturo na sua maneira de lidar com essas pessoas.
Acredito que, ainda hoje, colocar estas histórias nas vozes e nos corpos de artistas pelos palcos, becos, black-boxes e avenidas deste mundo fora, valerá sempre a pena, na medida em que cada vez que se conta uma história, se ativa a memória. E de que nos serve a memória, senão para analisarmos o passado e, com base nisso, tomar as nossas decisões no momento? Estas decisões, tanto quanto me importa, podem ir desde a motivação para ação política (partidária ou da comunidade), até à simples dedicação de um momento a pensar sobre o que se ouviu.
No caso específico de contar as histórias que este livro nos traz, poderemos ter algo tão ativo como a junção ou acompanhamento do trabalho de associações, como a ILGA, ou algo tão simples como pensar porque é que aquelas histórias aconteceram ou até pensar no porquê de continuarem ainda, por vezes, a acontecer hoje.
Como já tenho escrito, vejo na arte, em geral, e no teatro, em específico, um poder de transformação (ainda que em pequena escala) que pode ter um impacto brutal, se não no mundo, numa pequena comunidade. E se conseguirmos, pela arte, pela política ou seja pelo que for, dar oportunidade às pessoas de viverem sem medos na sua comunidade, por mais pequena que seja, já teremos ganho algo. Posto isto, vamos ao teatro? Não, vamos ouvir histórias?
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