A ideologia e o plano de ação aplicados ao poder local são postos à prova e, nesse sentido, os resultados finais destas eleições podem vir a ter repercussões na vida interna dos partidos e nas suas lideranças.
Texto de Francisco Lemos Araújo
Desde há umas semanas, e com mais fulgor desde o início de setembro, que os candidatos ao municípios e freguesias do país têm feito as suas aparições e apresentado os planos que querem implementar nas localidades a que concorrem. Algo que é natural, pois é sobre isso que devem incidir as campanhas: ideias.
A juntar às ações de rua, realizaram-se também alguns debates televisivos entre os candidatos, com o objetivo de lhes dar um palco para que estes expliquem aos eleitores os seus programas. Esses debates, uns de forma mais esclarecedora outros menos, serviram esse propósito e deram oportunidade aos candidatos a estas eleições de se mostrarem.
Com as autárquicas à porta, a semana passada marcou o início oficial do período de campanha (que na verdade já tinha arrancado há muito tempo). Mas este trouxe uma certa mudança no foco, que passou dos candidatos de agora para os que poderão vir a sê-lo e das ideias locais para uma discussão no plano nacional. De repente, parece que fomos transportados para o futuro, para o aparentemente-não-tão-longínquo-assim ano de 2023.
As notícias que acompanhamos na televisão e nos jornais referentes à campanha incidem muitas vezes sobre os líderes partidários, onde estes se encontram no território nacional e que candidato autárquico do partido estão a acompanhar. Discursam em conjunto com quem se candidata, mandam recados ao Governo e António Costa responde de volta à oposição e aproveitam para ir lançando a discussão do próximo Orçamento de Estado.
De tal forma que quase dá a sensação de que são eles próprios que terão o nome no boletim de voto no próximo dia 26.
Compreendo e é perfeitamente natural que os líderes dos partidos façam campanha em conjunto com os “seus” candidatos. Afinal de contas, os partidos não deixam de ir a jogo apenas porque os seus líderes não constam das listas que vão a escrutínio. A ideologia e o plano de ação aplicados ao poder local são postos à prova e, nesse sentido, os resultados finais destas eleições podem vir a ter repercussões na vida interna dos partidos e nas suas lideranças.
Já assistimos no passado ao impacto que as autárquicas podem ter nesse campo e até mesmo no país. Em 2002, após uma derrota do PS nas autárquicas realizadas no fim de 2001, António Guterres demitiu-se do cargo de primeiro-ministro e de secretário-geral do PS. Mais recentemente, o resultado do PSD nas autárquicas de 2017 levaram a que Pedro Passos Coelho decidisse não se recandidatar à liderança do partido nas eleições diretas marcadas para 2018.
Neste sentido, compreendo que os líderes apareçam, uma vez que o seu futuro e o do partido podem ficar em causa.
No entanto, as autárquicas, eleições cujo sentimento de proximidade do eleitor com os candidatos é tendencialmente maior e cujos eleitos terão o poder de impactar de forma mais direta a vida dos seus eleitores, são muito mais que isso. As eleições para 308 autarquias e assembleias municipais e 3.092 freguesias não podem ficar focadas em meia dúzia de figuras da política nacional.
Estas eleições não podem ser uma antecâmara das negociações do Orçamento do Estado para 2022, na qual o Governo e partidos trocam recados sobre o que pretendem levar para cima da mesa. Muito menos pode significar uma campanha mais branda em certas localidades de forma a não irritar alguns potenciais parceiros de negociação, pois esse aligeirar apenas vai prejudicar quem reside nesses municípios e freguesias, que se vêm privados do melhor debate de ideias possível por motivos que transcendem o objetivo destas eleições.
Tão pouco podem ser uma antecipação das legislativas que apenas vão acontecer daqui a 2 anos, como tem acontecido com os líderes partidários a fazerem uso desta campanha para fazer ataques entre si como se estivessem a concorrer diretamente para o mesmo cargo, usando temas do espectro nacional e trunfos que, nestas eleições não fazem sentido, como tem sido feito com o Plano de Recuperação e Resiliência.
As autárquicas, pelas suas características de proximidade, podem apresentar uma imagem mais fiel daquilo que são as tendências políticas em cada localidade. Daí que, à partida, quanto melhor for o resultado de um partido nestas eleições, maior será a sua implementação local e, consequentemente, maior será a votação futura (neste caso, nas legislativas).
Mas isso não é tão linear assim, como se pode verificar pelo exemplo do BE, que é a terceira força política no Parlamento, mas a nível autárquico não tem uma tradição de resultados fortes, não tendo nenhum presidente de câmara eleito.
Isto pode-se explicar pelo facto de nas autárquicas o voto ser tendencialmente mais pessoal, dirigido ao candidato e não tanto ao partido que o apoia e também porque nestas eleições é possível o voto em independentes, o que não sucede nas legislativas. Tal significa, por exemplo, que um votante habitual do PSD em legislativas possa votar num independente nas autárquicas, o que poderá baralhar algumas contas para o futuro.
Por isto, este estilo de campanha realizada pelos líderes partidários vem desvirtuar precisamente a ideia de retrato mais fiel da implementação das forças políticas no território nacional. O foco das autárquicas deve ser sempre o poder local e as ideias para cada região em específico. Se existe alguma vontade de efetivamente dar corpo à tão badalada “descentralização” que não passa do papel, o primeiro passo tem obrigatoriamente de passar por tratar as autárquicas como eleições locais que o são, respeitando as populações, e não como mais um palco para os líderes nacionais.
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