De João Maria França Martins
Um jogo constante entre visível e invisível, passado e presente, normalidade e anormalidade. É entre estas tensões que se movimenta o filme vencedor do Óscar de Melhor Filme Internacional.
Numa adaptação do livro homónimo de Martin Amis, o realizador Jonathan Glazer retrata a vida do comandante de Auschwitz, Rudolf Höss e da sua esposa, enquanto habitam na sua casa de sonho, colada ao campo de concentração.
De um lado do muro, a vida de uma família numerosa com direito a todas as serventias e um belo jardim. Do outro, a morte de milhões de pessoas no maior campo de extermínio erguido pelo nazismo.
Em Zona de Interesse, estamos apenas no lado onde se encontra Höss e a sua família. É o seu quotidiano com uma serenidade funesta que é representado.
O espectador nunca vê o horror do genocídio, mas sabe sempre que é ele o verdadeiro pano de fundo. Tal remete para um dilema que fez correr muita tinta, ao longo da História do Cinema.
Será que podemos representar o irrepresentável? Ao retratar de modo direto o ocorrido no Holocausto, estamos a dar visibilidade para que permaneça na memória coletiva e a impedir a sua repetição ou a espectacularizar o acontecimento e, com isso, a banalizá-lo e a fazê-lo cair no esquecimento?
Talvez sejam estas questões que tenham levado o realizador a abordar o genocídio, escolhendo como ângulo a vida de um dos seus maiores responsáveis. Glazer optou por um meio-termo: mostrar ao espectador sem que ele veja, mas ouça.
Poder-se-ia dizer que o ruído é o efetivo protagonista do filme. Mais do que elogiar as qualidades técnicas do som, que tornou expectável que o filme tenha também arrecadado o Óscar de Melhor Som, importa destacar a centralidade que este desempenha.
Os barulhos que o espectador vai ouvindo e que o remetem para o que vai acontecendo para lá da casa são os sons de um sofrimento inimaginável. E são da maior relevância por serem, em simultâneo, ruído insignificante para as personagens do filme, mas ensurdecedores para o espectador.
É, aliás, esta indiferença que dá toda a pertinência ao filme.
Crianças a brincar, mulheres a tratar das lides domésticas, um chefe de família empenhado no seu trabalho e uma dona de casa orgulhosa dos seus girassóis.
Tão indiferentes e alienados do que os rodeia como o único ser não pensante daquela vivenda, o cão da família. Como puderam aqueles humanos ser tão desumanos?
Como puderam aquelas pessoas viver de forma tão ordinária, no duplo sentido da palavra, sendo vizinhos do acontecimento mais extraordinário da História da Humanidade? É a “banalidade do mal”, tão bem identificada pela filósofa Hannah Arendt.
Em Zona de Interesse, nós nunca vemos as consequências do mal, mas sim as suas causas.
O interessante do filme é esta zona de desinteresse para com o exterior patente na continuação da vida banal daquela família.
O mal está assente na capacidade das personagens de se abstraírem do outro ou, por outras palavras, na ausência de abstração para se meterem no lugar do outro.
Somos, assim, confrontados com uma das facetas mais assustadoras do humano, a indiferença. Uma característica universal, independente da idade, género, nacionalidade ou época histórica.
Não será este desinteresse para com o próximo que pauta também os nossos dias?
Zona de Interesse é um despertar para a forma como nós próprios, todos os dias, também transformamos em ruído os mais diversos sons de desespero de quem nos rodeia.
É sobre a banalidade do mal no Holocausto. Mas é também sobre a nossa indiferença com Gaza, com a Ucrânia e com os inúmeros conflitos que ainda ocorrem no nosso mundo.
É sobre a nossa apatia com a crise climática. É sobre o nosso desinteresse para com os níveis injustificados de pobreza que ainda assolam o nosso país, para não falar do nosso mundo.
Jonathan Glazer fala-nos do passado para refletirmos sobre o presente. Mais do que dar respostas, este é um filme que levanta questões.
Estaremos coletivamente adormecidos com a quantidade de imagens com que somos todos os dias inundados? Permaneceremos cada vez mais imersos nas nossas pequenas bolhas e indiferentes ao que nos rodeia?
A única forma de derrubar o gigantesco muro de apatia é o recurso à empatia para não banalizar o mal de que também somos vizinhos.
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