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Água e Azeite

de Hélder Verdade Fontes


Boa parte da química prende-se com o estudo da mistura de substâncias, seja com o objectivo da sua miscibilidade, separação ou reacção.

É uma disciplina fundamental em qualquer curso da área, pois, sem o seu conhecimento, não existe um entendimento correcto de como ocorre a maioria dos fenómenos. Talvez por defeito de formação (mas a cada dia que passa sentindo-me menos “químico”), o estudo das diversas misturas interessa-me, seja as que são totalmente miscíveis, seja as que nem com uma agitação à força se conseguem misturar – estas últimas são particularmente interessantes.


Com a nossa vida frenética, há misturas que nos passam totalmente ao lado. A mais notória é a da doutrina neoliberal, que dita que democracia e mercados capitalistas são inseparáveis, isto é, fazem uma mistura perfeita, são totalmente miscíveis, não existem senão em conjunto.


A lógica enunciada aparenta ser simples: só começaram a surgir instituições democráticas e livres quando a economia mercantil capitalista se apoderou de toda a vida. Como se não bastasse este encadeamento, adicionam um grau extra de complexidade: afirmam existir uma ordem de precedência para que a mistura possa ser feita – primeiro cria-se a economia de mercado capitalista e só nela pode a democracia surgir e subsistir, fazendo com que esta última se aproxime de um mero produto da primeira.


Esta visão é extremamente limitada e, até, caricatural do que é a democracia, do que foram os milénios de desenvolvimento humano até à revolução industrial e das consequências dos mercados capitalistas na sociedade.

Na realidade, faz muito mais sentido pensar nos dois conceitos como imiscíveis, por várias ordens de razão. Primeiro, porque o próprio conceito de democracia evoluiu ao longo dos milénios com ou sem a tal economia de mercado capitalista.


Durante vários séculos, tivemos (e ainda temos) economias completamente mercantilizadas que não cumpriram o mínimo de critérios democráticos, assim como sociedades mais ou menos primitivas, sem um mercado capitalista e que eram, à luz do seu tempo e realidade, democráticas.


Segundo, porque o conceito de democracia apresentado na tese liberal encontra-se marcadamente amputado, pois exclui toda e qualquer decisão que influencie o sistema económico, ainda que essa escolha parta de uma decisão democraticamente feita.

Terceiro, porque a introdução de mercados capitalistas no seio das sociedades leva à sua transfiguração para sociedades de mercado, isto é, em que todas as suas esferas são mercantilizadas de forma capitalista. Basta pensar que a lógica democrática do “um cidadão, um voto”, fundamental para a soberania popular, foi conspurcada pela “um euro, um voto”, mostrando a mercantilização da própria democracia.


Dar a ilusão de que esta mistura é possível e necessária não é inocente – é uma tentativa de legitimação de um projecto institucionalmente desigualitário, assim como cada vez menos democrático (à medida que os mercados capitalistas tomam conta de mais valências da humanidade e das suas relações, menos democrática se torna a sociedade).


A defesa ideológica desta mistura passa, principalmente, pelo constante repetir de que qualquer outra forma de organização resultará num caminho para à servidão. Contudo, esse receio é manifestamente infundado: o maior período de prosperidade para as sociedades ocidentais foi justamente quando revertemos este caminho insano da mercantilização total.


Ou seja, quando os poderes democraticamente eleitos e a sociedade tomaram as rédeas do mercado e ditaram a construção do Estado Social, da massificação do ensino terciário e superior, duma justa repartição do rendimento e capital e de maior poder para as classes laborais.


Em suma, a construção do projecto social-democrata. Já o período que lhe seguiu – o da revolução conservadora – trouxe somente crescente desigualdade, o empobrecimento do cidadão e a consequente diminuição da sua liberdade. Ao que parece, o único caminho para a servidão que existe é o de manter esta mistura ilusória.


Destas experiências resulta o conhecimento de uma mistura totalmente miscível: sociedade e mercados são, naturalmente, indissociáveis. Os mercados estão incrustados em relações sociais, ou seja, a sua construção, guiar e ditames só fazem sentido dentro da sociedade e das suas estruturas de poder. Contudo, a nossa obsoleta mentalidade de mercado, para utilizar o título de um ensaio de Polanyi, impede-nos de tomar noção disto. 


É preciso ser claro e dizer que dissociar sociedades dos seus mercados é uma bizarria para os milénios de desenvolvimento humano. O problema prende-se com o facto da economia de mercado ter-se tornado a arena preferencial para a troca de bens e serviços produzidos, como bem disse Rudolph Meidner, mesmo para os actuais socialistas. É esta a maior vitória do neoliberalismo.


Não é preciso ter uma formação de base em química para saber o que acontece quando se tenta misturar água e azeite. Por mais força que se faça, agitação mais ou menos vigorosa, os dois líquidos acabam sempre por se separar, porque são imiscíveis.

Durante uma pequena janela temporal, ocorre a ilusão de que os líquidos estão a misturar-se, dando o aspecto de que a incompatibilidade não existe. Somente quando o reboliço pára é que tiramos a conclusão que nunca se vão misturar e de que a água fica poluída. A imiscibilidade e a poluição não se ficam pelo azeite e pela água.

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