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É preciso cultivar o nosso jardim

Nesta crónica, caro leitor, falamos de cultura no sentido menos figurativo e espero, assim, surpreender-vos.

de António Vaz Pato



O título roubo-o a uma das mentes mais irreverentes e lúcidas do Iluminismo. No fim do livro “Cândido ou o Optimismo”, depois de parodiar e satirizar o optimismo doentio dos seus pares filósofos perante a miséria e os vícios humanos - o melhor dos mundos possíveis, diziam eles - François-Marie Arouet, mais conhecido por Voltaire, remata com estas precisas palavras.


Mas o que quereria Voltaire transmitir quando nos pede, através de Cândido, para cultivarmos o nosso jardim? Que procurar um significado metafísico para a bondade universal é inútil? Talvez. E muitas outras ideias certamente.


Aquilo que eu retiro para este pequeno texto que vos escrevo é o seu simbolismo mais literal: cultivar o espírito e o corpo através da terra arável, cuidando do espaço em nosso redor, do espaço sobre o qual temos directa influência.

Actualmente, as hortas e os espaços de agricultura comunitária e particular aumentam a olhos vistos. Em Lisboa, sempre que um novo terreno reservado para cultivo é inaugurado, logo se ocupa de hortelões, muitos ficando em longas listas de espera. É um sinal de mudança e ao qual os autarcas e decisores políticos devem prestar atenção. Se as pessoas procuram estes lugares, não será por acaso: há um genuíno interesse em semear e colher os nossos próprios alimentos. Aqui e ali, o campo vai penetrando timidamente na cidade, reflectindo uma mudança de paradigma.


De facto, podemos associar esta alteração ao reconhecimento de que o espaço urbano é fonte de cansaço e tensão generalizados, uma consequência do bulício e do ruído constantes. Como tal, as hortas e os jardins funcionam como refúgios, locais que acolhem evadidos temporários. Gonçalo Ribeiro Telles, nome maior da arquitectura paisagista em Portugal, observou este fenómeno certamente com muita satisfação. Contudo, reconheceria também que há uma expansão lenta em curso dos espaços hortícolas que não responde às necessidades das pessoas. As listas de espera, como já havia dito, assim o fazem crer.


Creio que as hortas são subestimadas e julgadas precipitadamente por uma grande maioria. Com este pequeno artigo pretendo provar que a sua importância transcende barreiras.

Podemos dizer que é transversal à cultura, ao ambiente, à economia e à sociedade. Se o caro leitor quiser saber como, acompanhe-me nos próximos parágrafos.


A soberania alimentar tem entrado no nosso léxico quando falamos em alterações climáticas. Num mundo cada vez mais globalizado, consumir local e sazonalmente é fundamental para diminuirmos a nossa pegada ecológica. Asseguro-vos que não sou nenhum romântico, pois reconheço que as hortas não são uma resposta contundente às necessidades alimentares globais da população, mas ainda assim representam um estado de espírito que nos faz reflectir sobre estas questões. Agir localmente tem consequências a nível global e é essa a mensagem que as hortas querem passar.


Num outro plano, os espaços de cultivo são locais de encontro e de reflexão, que combatem a fragmentação social que vemos crescer nas cidades. Promovem o sentido de comunidade, a partilha e reúnem as pessoas em torno de um objectivo comum.


Por essa razão, tem um potencial pedagógico imenso e já há várias escolas que escolhem fazer projectos agrícolas com os alunos, uma vez que os professores e educadores deduzem já as vantagens e os ensinamentos que a actividade transmite aos mais novos: a cooperação e a partilha. Para além disso, há um espírito de individualismo altruísta.


Cultivar é um acto terapêutico para quem o faz. É uma forma de evasão às rotinas e obrigações permanentes, tão válido como ler um livro ou cozinhar.

Trazer um pouco do campo para a cidade quebra a artificialidade do tecido urbanos e renova a importância de estarmos rodeados pela Natureza. Cidades como Lisboa ganham com o investimento nestes espaços porque os lugares ficam mais humanos com a sua existência. Mesmo que não sejamos entusiastas da agricultura, conseguimos identificar um valor estético na sua presença, da mesma forma que usufruímos de um jardim ou de um parque. “Ruralizar” a urbe pode ser uma ideia de progresso.


Muito ficou por dizer sobre as hortas, mas o espaço é curto e não posso alongar-me mais. Fica a promessa de trazer de novo este assunto para a conversa aqui no Jornal Crónico.


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