De Francisco Lemos Araújo
A noite de 10 de março foi longa e na verdade ainda não acabou, pelo menos até os votos dos círculos da Europa e de fora da Europa serem contados.
E mesmo nesse dia não há ninguém que possa dizer que os próximos anos da política portuguesa serão estáveis.
Depois de uma maioria absoluta do PS passamos diretamente para o parlamento português mais fragmentado dos últimos 40 anos, sem uma solução de governo óbvia e estável.
As duas soluções de governo tradicionais – a Alternativa Democrática (do PSD e CDS) e o Partido Socialista – encontram-se praticamente empatadas, com um terceiro grupo parlamentar claramente destacado e cinco partidos com menos de 10 deputados.
Além desta fragmentação, temos que nenhum bloco, à direita ou à esquerda, tem maioria sem o Chega – partido que todos recusam, e bem, levar para qualquer tipo de acordo ou coligação.
Este cenário ofuscou completamente aquela que deveria ter sido a grande vitória coletiva do dia: a redução da abstenção.
Apesar de ainda faltarem os números da participação nos círculos da emigração, podemos ficar relativamente satisfeitos com a taxa de abstenção de 34% no território nacional, a mais baixa em eleições legislativas desde 1995.
No entanto, o dia 10 de março não trouxe motivos de festejo a muitos com o resultado a ser um autêntico balde de água fria para quem aspirava ter uma vitória mais clara e ver o radicalismo de direita ter um crescimento mais contido do que se anunciava.
Tudo isso falhou.
Ainda sem os votos do círculo da emigração, o Chega já quadruplicou o número de deputados, tendo agora 48. E apesar de estar farto de saber que “não é não” está agora a querer forçar um papel de influência excessiva num potencial próximo governo liderado pela AD.
Para tal já veio usar duas táticas básicas.
A primeira é a de dramatizar a situação, dizendo que não está disposto a ser “humilhado” e colando o partido aos seus eleitores, afirmando que ao ignorar e não negociar com o Chega a AD estaria a “espezinhar” os eleitores do Chega.
A segunda é a de moderar em parte o seu discurso, querendo fazer-se passar por algo que não é.
Cair em qualquer uma destas artimanhas é um erro que se pagará caro e é, por isso, necessário desconstruí-las.
Em primeiro lugar é preciso tornar muito claro que os eleitores que votaram no Chega não se confundem com o partido – não são uma única entidade.
Haverá muitos que votaram no Chega por convicção e por acreditarem no seu projeto para o país, mas haverá muitos outros que apenas o fizeram por revolta, para abanar o sistema.
De qualquer das formas, essas pessoas não são o partido.
Por isso, quando se fala em afastar o Chega de coligações não é o mesmo que dizer que se ignora ou espezinha o seu milhão de votantes.
Apenas e só que as opiniões defendidas pelo partido não são compatíveis com o projeto de país defendido pela AD. Quanto aos seus eleitores, as suas necessidades e preocupações continuaram a ser atendidas, ninguém os ignora.
Em segundo, é preciso manter presente que esta “moderação” das exigências e a ideia de ser um partido mais soft são totalmente enganadoras.
Numa entrevista dada à CNN Portugal no dia 11 de março, André Ventura tentou passar a ideia de que o seu programa não era assim tão radical.
Disse que para resolver os problemas urgentes atuais, como aumentar salários e pensões ou reduzir impostos, estaria disposto a afastar algumas das propostas mais exuberantes. Mas com uma ressalva: por agora.
Ou seja, diz que há problemas mais urgentes para resolver e só por isso é que não coloca essas medidas em cima da mesa. Mas continua a defender a prisão perpétua só a fazendo cair se houver aumento de penas e diz que a castração química está no programa e “não está afastada”, apenas que não é para já.
Tal como defende uma mudança no país que estava à espera há 50 anos, ou seja, desde o dia 25 de abril de 1974, acreditando que a mudança que nesse dia ocorreu não foi positiva.
Posto isto, pergunto se este é um partido moderado com que se possa negociar. A minha resposta é simples: não.
Não é possível tentar ter qualquer tipo de entendimento com alguém que defende tais atrocidades e tem uma visão que não é compatível com um país justo, inclusivo e moderno do século XXI.
E não é possível porque, apesar de agora quererem passar a imagem de responsáveis e moderados, a verdade é que o seu programa não mudou uma letra e se algum dia chegarem ao governo estes temas vão para cima da mesa.
Descalçar a bota
Perante isto, como é que descalçamos esta bota? Sabendo voltar a falar com os eleitores do Chega.
É essencial ter a capacidade de separar o partido dos seus eleitores e focarmo-nos nestes últimos.
Temos de voltar a saber falar com os eleitores descontentes que votam neste tipo de movimentos como forma de passar a mensagem. Temos de parar de ignorar os seus problemas e arranjar soluções moderadas e explicá-las de forma clara.
Pedindo, desde já, desculpa pela auto-citação, há pouco mais de dois anos escrevi aqui no Crónico um texto que terminava assim:
“Com 12 deputados sentados no hemiciclo, existe a oportunidade de expor sistematicamente, de forma clara e pedagógica, sem cair no engodo da berraria, a inutilidade do Chega no sistema político nacional. Não a desperdicemos.”
Desperdiçámo-la. Não soubemos colocar em cima da mesa as inconsistências e mentiras do Chega, não soubemos expor o engodo que representa no sistema político português e hoje vemo-nos com quase 50 deputados seus no parlamento.
Mas ainda vamos a tempo de recuperar.
É preciso trabalho, paciência e inteligência, fazendo política focada nas pessoas, ouvindo-as e trabalhando com elas.
Há que descer do pedestal em que muitos se colocaram. Mas enquanto houver uma pessoa que esteja disposta a lutar vamos sempre a tempo de recuperar.
Agora, mãos à obra.
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