de Joana Soares e Raquel Batista
Nesta segunda entrevista da rubrica Tu Cá, Tu Lá, estivemos à conversa com a Carolina Franco que por mais inspirações que tenha partilhado connosco é, no nosso entender, uma das jovens jornalistas mais promissoras da atualidade. Da fase em que quis ser jornalista de moda e decidiu ir para a Escola Secundária Soares dos Reis, à licenciatura em Ciências da Comunicação (Lusófona do Porto), passando por uma pós-graduação em Curadoria da Arte (NOVA FCSH), pela cultura portuguesa nas suas mais variadas formas (Gerador) e por uma aproximação às questões sociais e aos direitos humanos (Shifter), a Carolina confirmou-nos, mais uma vez, que também ela é absolutamente essencial. Na sua forma tão lúcida de questionar e refletir sobre o mundo em que vivemos, não sobre determinado assunto, mas a partir dele, para uma realidade em que se criam pontes e se constroem diálogos, com as várias vozes que se vão deixando ouvir. Sempre com o devido respeito.
Quais foram as tuas motivações para seres jornalista e quais são as do momento? Qual é o género jornalístico que mais aprecias e porquê?
Eu sempre tive como referência o meu pai, um jornalista sem formação, que começou a fazer rádio quando foi enviado para a guerra colonial, em Moçambique. Lá tornou-se um radialista autodidata. As memórias que trouxe fizeram-no participar em vários projetos de jornalismo, e tudo isso fez com que eu me fascinasse pelo jornalismo.
Houve uma fase da minha vida em que eu pensei ser jornalista de moda, devido às referências da adolescência. E foi aí que decidi ir estudar na Escola Secundária Soares dos Reis para conseguir entender a relação da moda com o mundo e o mundo da moda. Foi nessa fase que percebi que todos os assuntos estavam ligados.
Depois, fui para a Universidade Lusófona do Porto estudar jornalismo, o curso tinha uma vertente muito cultural e, durante esse tempo, apercebi-me de que podia escrever sobre assuntos para além de um disco ou de uma peça, podia escrever sobre a precariedade do setor cultural, por exemplo.
Foi no Gerador, quando comecei a trabalhar, que percebi que o meu género favorito era reportagem. Porque é o género mais abrangente de um acontecimento ou tema e, ao mesmo tempo, parece ser o género que respeita mais todas as vozes das pessoas que queremos ouvir. No outro dia, em conversa, disseram-me que a reportagem é muito semelhante à montagem de um filme, é possível criar a narrativa e ao mesmo tempo fazer com que a pessoa que esteja a ler faça parte da história.
Achas que o jornalismo faz o jornalista ou o jornalista é que faz o jornalismo?
Por um lado, o jornalista é que faz o jornalismo porque dois jornalistas podem contar a mesma história de formas completamente diferentes, porque existe um enquadramento, o olhar de uma pessoa perante um mesmo acontecimento.
Posso dar o exemplo desta notícia recente do rapaz que estava a planear um ataque à Universidade de Ciências de Lisboa, temos jornalistas que têm cuidado no enquadramento do assunto, e temos outros jornalistas que têm uma visão completamente diferente de como se deve expor a situação. Mas, ao mesmo tempo, para que o jornalista possa fazer um bom trabalho, depende do jornalismo enquanto setor ou ecossistema, há uma máquina que funciona enquanto eu sou uma peça. No meu caso em particular, não me posso queixar de que o que eu tenha escrito tenha saído de forma completamente diferente.
A maior escola de jornalismo é fazer jornalismo, mas a formação e os valores são muito importantes. Às vezes penso: será que estou a fazer alguma coisa que disse que nunca iria fazer? Será que me estou a deixar levar pelo contexto? Este questionamento é muito importante.
Acabaste a licenciatura em Ciências da Comunicação, concluíste uma pós-graduação em curadoria, agora estudas antropologia e trabalhas a tempo inteiro no Gerador. No meio disso tudo ainda há tempo para escrever para o Shifter e para outros projetos. Podes explicar-nos as principais diferenças no tipo de conteúdo que escreves para cada órgão de comunicação?
No início, o Gerador era um sítio que só abordava a cultura portuguesa. Quando comecei a colaborar com o Shifter pude escrever sobre temas que não cabiam na linha editorial do Gerador.
Uma vez uma jornalista disse-me que quando se está num sítio em que não se pode fazer tudo é saudável procurar um sítio para concretizar isso. E a minha primeira peça para o Shifter acabou por ser reflexo disso. Foi uma sessão a que eu fui com cineastas indígenas. Eu tinha de falar sobre aquele assunto, por isso colaborar com o Shifter tornou-se de alguma forma mais evidente, porque é um lugar onde conseguia canalizar essas entrevistas e que não faziam sentido no Gerador.
A linha editorial do Gerador abriu mais e agora consigo fazer trabalhos nos dois lugares que eu considero essenciais abordar. Por exemplo, o artigo que escrevi para o Setenta e Quatro, foi um artigo que só caberia ali e esta é uma das vantagens dos meios independentes em Portugal: existem possibilidades de fazer coisas diferentes para cada um deles. E é bom para os jornalistas perceberem que o seu trabalho pode caber em diferentes sítios.
Quais foram os trabalhos mais desafiantes que fizeste até agora e quais são aqueles que ainda gostavas de fazer?
Há dois trabalhos que eu achei muito desafiantes, um para o Shifter e outro para o Gerador.
Para o Shifter aconteceu numa altura em que a situação na Polónia, onde estavam a acontecer ataques a direitos humanos, era muito pouco falada em Portugal. Raramente havia fontes locais que poderiam falar. Decidi, então, falar com pessoas da Polónia, mas não havia condições para que isso fosse possível e foi pelas redes sociais que comecei à procura de informações e de contactos. Através do meu computador confiei 100% no que aquelas pessoas me estavam a contar. E tentei fazer uma peça útil, credível e que respeitasse as pessoas que estava a entrevistar e a comunidade que esperava ser mais ouvida na Europa.
Foi uma reportagem que me colocou vários desafios éticos e deontológicos, tal como a reportagem que fiz para o Gerador sobre história LGBTQI+ fora dos grandes centros urbanos, que tinha como premissa perceber como é que uma pessoa da comunidade LGBTQI+ cresce ou vive fora do núcleo urbano, tendo em conta que durante muitos anos havia uma grande migração desses núcleos para Lisboa e Porto.
Consegui o testemunho de várias pessoas e isto é uma forma de agradecer-lhes, por terem confiado em mim por me contarem as suas histórias.
Um grande desafio que se impôs durante esta reportagem foi o distanciamento. À medida que estava a ler aquelas histórias tornou-se difícil não ficar incomodada e não sentir uma impotência por não poder fazer nada perante aquilo – para além da reportagem – mas que não é garantia de mudança. E esta reportagem colocou-me a questionar sobre os limites da reportagem, onde pode chegar.
Quais são as pessoas que mais te inspiram no jornalismo e na cultura? E Porquê?
Estava a falar nesta questão do respeito e houve uma pessoa que eu admiro profundamente, que me disse uma vez que independentemente de quem estejamos a entrevistar, há uma coisa que devemos a essa pessoa que está do lado de lá, que é o respeito. Não estamos a fazer um favor à pessoa, ela é que nos está a dar o tempo dela para fazermos o nosso trabalho. Portanto, há um mínimo que temos sempre de garantir que é o respeito, mesmo que possamos discordar da pessoa. Quem me disse isso foi a Diana Andringa que, desde os tempos da faculdade, me inspirou sempre muito e era alguém para quem eu olhava e pensava “É isto que eu quero fazer. Eu quero falar sobre estas coisas que importam, doa a quem doer. E não ter medo”.
A Diana esteve presa pela PIDE, fez um trabalho jornalístico ao longo da sua vida absolutamente essencial, que acredito ser digno de ser olhado e estudado, para percebermos o que há de essencial no jornalismo - e acabou por ser este o nome do perfil que escrevi sobre ela [para o Gerador]. Porque é assim que eu olho para a Diana, com esta noção de sorte, de poder viver no mesmo tempo dela, de poder olhar para o seu trabalho e perceber como é que devemos fazer jornalismo.
Depois há outra pessoa que eu admiro muito, que é a Ana Cristina Pereira (Público), diria que pelos mesmos motivos. Se eu for procurar estes assuntos que me interessam hoje, eu vou encontrar um artigo da Ana Cristina Pereira, porque ela está sempre lá. O que me inspira nela é esta capacidade de saber falar sobre os assuntos essenciais no momento em que é preciso falar sobre eles e como é que podemos respeitar estas pessoas, cujas histórias estamos a contar. Outras pessoas que admiro muito são a Aline Flor (Público) e a Maria João Martins (Diário de Notícias). Eu diria que estas quatro mulheres são as minhas maiores referências de jornalismo em Portugal. Sinto que há muito de quem elas são no trabalho que fazem.
Há outras pessoas que admiro pela audácia ou pela capacidade de pôr as coisas em palavras, por exemplo, a Joan Didion. Há uma coisa muito curiosa no processo de escrita que é ter pensamentos, diálogos e assuntos do dia-a-dia na nossa cabeça e querer escrever sobre eles. E é difícil tentar materializá-los. O primeiro livro que eu li em que isso aconteceu foi a Insustentável Leveza do Ser, do Milan Kundera. Senti que ele tinha uma capacidade incrível e inacreditável de pôr em papel o ritmo dos nossos pensamentos. Mais tarde, quando descobri a Joan Didion, percebi como era possível tentar fazer isso com a nossa vida e canalizar a nossa dor na escrita.
Depois há pessoas que têm a capacidade de fazer esta transição daquilo que é a minha vivência para aquilo que é a minha posição e a das outras pessoas no mundo (de um ponto de vista mais académico). E aqui falo da bell hooks, da própria Angela Davis e de pessoas que têm essa capacidade de levar a sua luta do dia-a-dia para um pensamento que se torna universal. Há muitas outras referências, mas acredito que estas são absolutamente essenciais para mim.
É atual discutir-se o papel do jornalista e, cada vez mais, existem jornalistas que assumem um papel “ativo” na sociedade em questões de causas. O que pensas em relação a isto? Consideras que um jornalista pode ser um ativista? Ou pensas que se deve proteger para manter a tal “credibilidade” que dizem ser tão necessária?
Todos temos os nossos direitos enquanto pessoas. Antes de ter os meus direitos e ser defendida enquanto jornalista, tenho de ser defendida enquanto pessoa. E se há alguém que ponha em causa os direitos humanos, a liberdade de outra pessoa ou de um grupo de pessoas na mesma condição, acho muito difícil não tomarmos uma posição em relação a isso. Mais do que defender constantemente os direitos humanos (que é do que falamos quando falamos em ativismo), acaba por ser inevitável tomar uma posição. Porque não te apagas como pessoa por seres jornalista. É uma questão difícil.
Por exemplo, agora com as eleições viu-se muitos jornalistas manifestarem-se no Twitter. Achas isso legítimo ou achas que, de certa forma, os prejudica no trabalho?
Acho que é legítimo. No Twitter, há quem tenha no seu perfil a expressão opinions are my own, porque são pessoas que quando escrevem têm quase essa necessidade de dizer que as opiniões são delas e não são das empresas ou dos jornais para as quais elas trabalham. Voltando à frase do respeito da Diana Andringa, eu posso entrevistar uma pessoa de extrema-direita e ter respeito pelo tempo que ela me está a dar (se ela mo der) e posso ouvi-la, fazer uma peça em que ela esteja presente, mesmo que não concorde com as suas atitudes ou visão. Mas, isso não significa que eu, enquanto pessoa, não tenha o direito de expressar aquilo que sinto em relação a essas pessoas ou visões do mundo.
Acho que é muito perigoso cultivarmos a ideia de que os jornalistas não podem dar opinião e falar, porque isso cria uma sensação de que se dás uma opinião é porque tens um viés. Mas nós temos todos um viés. Somos pessoas, temos as nossas leituras dos assuntos, mas isso não impede que façamos o nosso trabalho com o máximo rigor e respeito.
Pensando no panorama nacional, como é que olhas para o jornalismo atualmente? Como é que o caracterizas e o que imaginas como perspetivas futuras para o jornalismo em Portugal?
Quando fazemos uma leitura crítica do que é o jornalismo em Portugal fala-se muito do tempo. Da pressa que os tempos acelerados em que vivemos trouxe para a forma como contamos as histórias ou quando é que as contamos. Acho que há muitas formas possíveis de falar sobre um acontecimento e, por vezes, assistimos a uma falta de consenso sobre a forma correta de falar sobre os assuntos.
Na faculdade aprendemos o que é um código deontológico e muita gente se orgulha de ter um na mala. Para mim, o código deontológico está escrito de uma forma que não dá para enganar. Se diz que deves proteger a identidade de uma pessoa, não há dúvida nenhuma quanto a isto. Parece-me perigoso porque, a partir do momento em que se abrem precedentes e se convidam vários comentadores para comentar assuntos baseados no nada, a notícia passa a ser completamente deturpada daquilo que é o conteúdo final, porque o que as pessoas fixam é aquilo que chega primeiro (como o arrastão de Carcavelos ou o ataque à esquadra de Alfragide, que depois se veio a perceber que não tinha acontecido). Nem sempre a verdade prevalece sobre a mentira, não é? Por isso, já seria um passo se os jornalistas e os profissionais do jornalismo se juntassem mais vezes, pensassem mais vezes sobre a prática do jornalismo e fossem mais críticos.
Porque o que acontece é que toda a gente está sempre na correria do dia-a-dia, de última hora, na sua bolha que é a sua redação ou neste momento a sua casa - e não há um pensamento crítico sobre o jornalismo que estamos a praticar. E isso faz falta. Para mim é a grande mudança que devia haver no jornalismo. Um sinal de que isso é preciso e que não acontece vezes suficientes foi o último congresso de jornalistas, quando houve essa possibilidade de troca, de pensamento crítico e de pessoas que fizeram comunicações de assuntos muito importantes e a dar conta de situações profissionais precárias que se mantêm ainda hoje. Isso mostrou-nos que havia uma sede de discussão de jornalismo que não acontecia desde o último congresso, há 18 anos.
Mais do que fazer uma leitura sobre aquilo que está por vir, sublinho esta importância de nos reunirmos mais, de dialogarmos mais entre pares, de criarmos pontes e de não ficarmos nas nossas bolhas, seja por questões geracionais, seja por questões relacionadas com órgãos de comunicação diferentes. Seria importante trazermos para a discussão os profissionais, quer estejam inscritos ou não num sindicato (pois há muitas pessoas que ainda não têm carteira profissional e isso não significa que não possam contribuir para essa massa crítica), assim como pessoas importantes para tomadas de decisão e controlo de qualidade no jornalismo como publishers, editores, diretores - que seriam essenciais para que as coisas mudassem um bocadinho.
Para terminar, e porque esta rubrica se insere na secção de Cultura do Crónico, gostávamos de explorar a tua visão desse campo. O teu percurso académico também passou por Curadoria e o teu trabalho atual como jornalista insere-se muito na discussão do papel da Cultura. Gostávamos de perceber como é que olhas para recetividade dos públicos em relação a estes temas?
Acho que a cultura é uma editoria de nicho e sempre senti que, cada vez menos, percebemos para quem estamos a escrever. A ideia da crítica nos moldes em que está hoje (por estrelas) foi deixando de me fazer muito sentido, porque não sabia até que ponto isso iria influenciar, de alguma forma, o olhar do leitor. Se formos aos primórdios da crítica, é essencial para que haja um questionamento do que é feito e isso é bom para o trabalho artístico. Mas, um dos grandes desafios ao escrever sobre cultura é perceber quando estamos a escrever para nós, para a pessoa que fez o produto artístico sobre o qual estamos a escrever ou para alguém que se vai relacionar com as nossas palavras e podermos trazer algo novo.
Em relação à curadoria, o trabalho do artista é essencial, sem ele não havia a exposição. E o trabalho do curador pode ser importante, na medida em que é alguém que te ajuda a fazer uma certa triagem e cria um caminho. No jornalismo isso é mais difícil porque as pessoas estão com tempos de atenção cada vez menores e o desafio é como conseguir prender alguém a um texto sobre um concerto em que a pessoa não esteve. Quão interessante isso será para ela? Talvez porque queria ir e não conseguiu. Se calhar porque não conhecia aquele artista e passou a conhecer. Ou porque abre caminho para a reflexão e para outras leituras.
Quando faço um artigo sobre uma exposição interessa-me pensar a partir daquela exposição e não apenas sobre aquela exposição. Que questões é que esta exposição ou este disco me traz? Como é que eu posso fazer uma leitura do mundo ou dos tempos que vivemos a partir disto? Parece que com a internet todos nós chegamos a tudo e podemos não precisar necessariamente de um artigo sobre determinada pessoa. O grande desafio aqui é perceber como é que o jornalismo cultural continua a ser um selo de qualidade para pessoas que procuram no trabalho deste jornalista ou deste jornal uma espécie de guia ou de lugar onde encontrarão coisas surpreendentes e a que, de outra forma, não chegariam. Portanto, sim, são tempos desafiantes.
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