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Saber Revisitar

É com algum preconceito que se observa a contemporaneidade a tocar na tradição. E acaba sempre por existir receio de embarcar na criação multidisciplinar e na fusão de estilos. Fará sentido que ainda pensemos assim?



de Ana Roque Antunes



A necessidade de categorizar objetos artísticos parece-me lógica e até muito útil. Na arte, como na vida, são precisas regras para nos organizarmos e, essencialmente, para conseguirmos comunicar. É importante que me refira a uma obra enquadrando-a na história, ou tendo em conta o seu autor, a sua estética, a sua formação instrumental ou até a sua finalidade. Assim, justificam-se expressões como «aquele quadro abstrato»: são formas mais concretas de nos referirmos a qualquer trabalho artístico.


Mas estas divisões só funcionam se não dominarem totalmente o nosso pensamento — se não nos tornarmos escravos de determinados rótulos, muitas vezes subjetivos, que a sociedade considera adequados para uma determinada obra de arte.

Se não criarmos sempre constrangidos, limitados pelo que vão chamar ao nosso trabalho e desconfortáveis por não termos a certeza de onde cabe cada pintura ou onde pertence cada música.


Posto isto, será assim tão relevante definir a fronteira entre estilos? Felizmente, há muitos artistas que discordam e abraçam precisamente os pontos comuns entre estéticas consideradas distantes. Lembro-me automaticamente do trabalho da cantora Maria João, com o seu Trio Ogre Electric (com João Farinha e André Nascimento).


Acho difícil categorizar a música que criam, e penso até que as tentativas de o fazer são totalmente dispensáveis. A expressão mais utilizada para os definir é «fusão entre jazz e eletrónica», que não passa de uma etiqueta vaga e redutora. A música deles é isso mesmo: a música deles. Não deveria ser tão urgente engavetá-la.



Fusões estilísticas à parte, pensemos na fronteira que tantos se esforçam por evidenciar, entre passado e presente, entre antigo e novo. Surgem demasiadas questões: Quando é que o novo passa a antigo? Quem define cada conceito? E, acima de tudo, porquê tanta separação? Porque é que a nova arte tem sempre de fugir a sete pés do que se fez no passado, num medo desnecessário de que a comparem ou associem, de que lhe tirem a originalidade?


Afinal, nada é absolutamente original, e a procura cega pelo que é «do futuro» nunca conduz a bom porto.

Há vários autores que falam sobre este dilema da autenticidade, como é o caso de Austin Kleon, no seu livro «Steal Like An Artist» — penso que este título diz tudo. É constante partir do que se conhece para criar novidade, partir da tradição para romper e descobrir novos universos. E felizes dos que não têm medo de o fazer, a cru, sem intenções de mascarar o processo ou de esconder o ponto de partida: são só medos de principiante.


Tomando a música de J. S. Bach como exemplo, sugiro que observemos duas abordagens distintas:


1.

A criação multidisciplinar que funde música barroca com dança contemporânea, pela mão da brilhante coreografa Anne Teresa de Keersmaeker, que trabalha frequentemente a música de Bach. Em conjunto com os bailarinos da sua companhia, Rosas, interpretou as Suites para Violoncelo, em janeiro desde ano, na Fundação Calouste Gulbenkian e, pouco tempo depois, em março, apresentou as Variações Goldberg a solo, na Culturgest. A artista consegue criar uma obra completamente inovadora partindo da incontornável música de Bach, unindo duas realidades que, à partida, parecem ser tão distantes.


2.

O álbum «After Bach», do pianista de jazz Brad Mehldau, onde são tocados alguns dos Prelúdios e Fugas d’O Cravo Bem Temperado, intercalados de reinterpretações fascinantes, segundo o seu background na música improvisada. Aqui, a abordagem mantém-se relativamente próxima na forma, mas muito diferente no conteúdo. A criação de Mehldau é disruptiva, aplicando elementos estéticos muito característicos da sua linguagem musical ao rigor típico da música barroca. O resultado desafia o ouvinte a escutar a peça original, seguida da sua reinterpretação, identificando todas as ligações e processos do pianista.


Estas duas abordagens, para mim, são claros exemplos de como se pode revisitar os clássicos de forma inteligente, sem a pretensão de os desvirtuar, mas inaugurando novos caminhos. De certa forma, não deixam de ser duas homenagens, muito distintas, à mesma música.


Em nenhuma destas obras existe preconceito em unir estéticas substancialmente diferentes. Pelo contrário, vemos uma vontade genuína de partir de um ponto para chegar a outro, deixando todo o processo à vista do público. Tudo acontece sem nunca se alterar o produto base: na primeira fusão, a coreógrafa trabalha sobre a música, que se mantém intacta; na segunda fusão, o pianista toca sempre as peças originais, antes das suas reinterpretações. Este cuidado de apresentar o ponto de partida sem qualquer alteração revela o grande respeito pelo passado, que é, para mim, a chave para o sucesso destes trabalhos.


Convido-vos a espreitar algumas destas obras. De Anne Teresa de Keersmaeker não deverão encontrar muito para além de trailers no YouTube. Vendo o lado positivo, tenho a certeza de que vos despertará ainda mais a curiosidade para a ver ao vivo. Brad Mehldau tem o seu álbum disponível no Spotify além do vídeo de uma performance ao vivo na Philharmonie de Paris, no YouTube. A terminar, não podia deixar de vos sugerir o álbum Open Your Mouth, da cantora Maria João, com o Trio Ogre Electric.


Espero que gostem. Tanto como eu!

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