Quase cem anos depois, revisitar este episódio que marcou definitivamente a história da Humanidade é, mais que um capricho intelectual, a vacina para prevenir a amnésia voluntária em que muitas vezes as sociedades adormecem. Optar por negligenciar o que aconteceu nos anos 30, recusando retirar as lições que a História deu, é meio caminho para repetir o fracasso de 2008.
Crónica de Francisco Camacho
Presidente da Juventude Popular em Lisboa
Os tempos instáveis que vivemos fazem antever um mais que provável ciclo económico negativo. As previsões de cenários multiplicam-se, mas será de estranhar ouvir certezas imprudentes quanto a soluções para o que o futuro nos reserva. Ainda assim, há exercícios de análise a momentos históricos que, sem anacronismos, podem ser fundamentais para evitar que as nações e os povos persistam na repetição de desacertos que a História já identificou.
Ora, ainda que a crise do subprime, com a falência de importantíssimas multinacionais financeiras que desencadearam um verdadeiro efeito dominó por toda a economia mundial, tenha marcado as novas gerações – num período em que não só os principais indicadores económicos o demonstram com clareza, mas também a percepção de cada um atesta uma paralisação brutal da produção, o fantasma da Grande Depressão de 1929 volta a agigantar-se.
Quase cem anos depois, revisitar este episódio que marcou definitivamente a história da Humanidade é, mais que um capricho intelectual, a vacina para prevenir a amnésia voluntária em que muitas vezes as sociedades adormecem. Optar por negligenciar o que aconteceu nos anos 30, recusando retirar as lições que a História deu, é meio caminho para repetir o fracasso de 2008.
Embora o crash da bolsa seja o momento mais marcante da Depressão, a quinta-feira negra acabou só por ser um reflexo de uma crise multidimensional que esteve assente em três fases distintas.
A primeira delas circunscreve-se ao fácil acesso ao crédito. Ainda que em moldes distintos dos actuais e numa economia bem menos interdependente entre Estados, as opções de política monetária, nos loucos anos 20, provocaram um boom no acesso a dinheiro fácil. Esta artificialidade económica, baseada em baixas taxas de juro (sem correspondência com o risco) e consequente inflação, associada a um conjunto de intervenções erradas, fez com que, ao contrário das crises anteriores, a Depressão perdurasse uma década.
O recado à data foi manifesto: a injecção de dinheiro na economia (então feito pela Federal Reserve System) com flutuações nas taxas de juros provocadas pelos Governos cria deturpações na economia real que passa a ter pilares assentes numa areia movediça.
Num segundo momento, o peso da orientação política de resposta à crise revelou-se elevado e desastroso. A Administração de Herbert Hoover impediu o reajuste natural do mercado, impondo políticas proteccionistas completamente fracassadas, como foi o caso do estabelecimento de limites à produção agrícola, a fixação de preços e da Smoot–Hawley Tariff Act – numa lógica oposta ao livre comércio, aumentou brutalmente a tributação sobre produtos importados. Mais do que um impacto directo no mercado interno, a adopção desta medida teve um efeito em cadeia, visto que o proteccionismo acabou por ser assumido um pouco por todo planeta, diminuindo brutalmente as trocas comerciais e acentuando o declínio das diferentes economias.
A segunda lição económica estava identificada: o comércio é uma via circular com dois sentidos e o proteccionismo, sobretudo em momentos de crise, em qualquer economia aberta e dinâmica, além de prejudicar o consumidor final, afecta o produtor que incorpora bens / serviços importados e agrava as exportações, como se sucedeu com as restrições provocados àqueles que vendiam para os EUA, ao verem diminuídos, em sentido contrário, os seus recursos para comprar bens americanos.
Com uma economia de joelhos, a solução venenosa adoptada pela mesma Administração, de forma a recuperar as contas públicas, sob a forma de poção a austeridade (Revenue Act de 1932): o maior aumento de impostos de sempre na história americana – o seu efeito foi ainda mais devastador.
Numa terceira fase, com a eleição de Roosevelt e face à conjuntura Democrata com o aparelho do partido no seu esplendor, procedeu-se à criação do célebre pacote de medidas económicas em que o Estado intervinha para uma reestruturação de um mercado muito diminuído, o New Deal.
Apesar da popularidade manifesta de FDR, que lhe valeu quatro mandatos, o programa que colocou em marcha deixava o do seu antecessor tímido, tal foi a ingerência do Governo Federal na Economia. Efectivamente, o sucesso tão proclamado do New Deal esteve longe de ser evidente, já que as opções assumidas – como a expansão monetária, a fixação de preços, a subida da remuneração mínima semanal, a obrigatoriedade do planeamento empresarial ser concertado com o Governo, os subsídios para diminuir a produção no sector agrícola, entre outras políticas – tiveram um impacto imediato no aumento do número de desempregados em 13 milhões, prejudicando especialmente as franjas sociais mais marginalizadas (caso disso foi o aumento significativo de negros desempregados nos Estados do Sul).
A intervenção governamental era de tal ordem que o Supremo Tribunal, em 1935, acabou mesmo por declarar inconstitucional a actuação de duas das mais importantes agências governamentais (a National Recovery Administration e a Agricultural Adjustment Administration). Após esta decisão judicial, e com a retirada de algumas das medidas intervencionistas que estas agências impunham, o desemprego começou a diminuir e outros índices económicos (positivos) a aumentar. Não obstante, e com resultados igualmente restritivos, Roosvelt contra-atacou como o Wagner Act.
Apesar da percepção positiva que existe em torno do New Deal, tendo alguns ganhos visíveis, a realidade é que a sua trajectória não foi linearmente ascendente. Ainda que o triunfo de Roosevelt se torne patente, mesmo após dois mandatos com muita reviravolta na procura da revitalização económica, e principalmente no comando militar dos Estados Unidos da América, a Economia voltava a dar uma lição aos decisores políticos: o intervencionismo e a injecção de dinheiro estão longe de garantir que as pessoas ganhem poder de compra real.
Será manifestamente descabido procurar comparações directas entre o nosso amanhã, num cenário de pós-Covid, e a experiência daqueles que vivenciaram 1929 e os anos que se seguiram. Porém, a génese da Grande Depressão e o seu impacto permitem-nos indiscutivelmente perceber que os efeitos das recessões podem ser diminuídos ou manifestamente prolongados por parte daqueles que nos governam. Aliás, grande parte da resposta está nas mãos de instituições como o BCE, cuja política monetária nos últimos anos, fixando juros negativos e compra de activos, se estava a tornar contraprodutiva.
As taxas que estrangulam o comércio, os impostos que deturpam os incentivos, a imposição de limites à produção que enviesa a concorrência, a destruição dos tecidos produtivos que amplia o desemprego e os instrumentos legislativos ultra-regulatórios que impedem o crescimento foram exemplo disso. Não foi o mercado livre que produziu a agonia de mais de dez anos iniciada em 1929; pelo contrário, foram os sucessivos equívocos políticos que despoletaram o seu efeito numa escala tão grande.
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