Se o PRR foi alvo de um amplo escrutínio por parte da opinião pública e dos vários setores de atividade, grupos de peritos e especialistas, o mesmo não se pode dizer acerca da nossa presidência. O distanciamento crónico que separa o cidadão comum das instâncias europeias e dos seus representantes prevaleceu.
Crónica de Sofia Escária
Portugal assume, desde 1 de janeiro e até ao fim deste mês, a presidência rotativa do Conselho da União Europeia, a instituição que representa os governos dos Estados-Membros e reúne os seus representantes (ministros e secretários de estado) para elaborar a legislação comunitária e coordenar políticas conjuntas.
Na primeira presidência portuguesa, em 1992, concretizaram-se as assinaturas do Tratado da União Europeia e do Acordo para o Espaço Económico Europeu. Na segunda, em 2000, foi organizada a primeira Cimeira UE-África, adotada a Estratégia de Lisboa e celebrado o Acordo de Cotonu com os países de África, Caraíbas e Pacífico. Por fim, na terceira, de 2007, procedeu-se à assinatura do Tratado de Lisboa e à organização da primeira Cimeira com o Brasil e da segunda com África. O que se consumou nesta quarta?
Durante os últimos seis meses, Portugal foi responsável por planear, presidir e conduzir as reuniões do Conselho e das suas instâncias preparatórias (comités permanentes, de assuntos específicos e grupos de trabalho), representando-o nas demais relações com as outras instituições da União Europeia (em particular com a Comissão e o Parlamento Europeu), em estreita coordenação com o Presidente do Conselho Europeu e o Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança.
Esta presidência sucede à da Alemanha e precede a da Eslovénia, países com os quais integramos o trio de presidências que elaborou um programa para os 18 meses em que estarão na liderança do Conselho. Sem prejuízo deste programa, Portugal tem o seu próprio para o semestre.
Sob o mote «Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital», o nosso Governo definiu um conjunto de linhas de ação e orientações políticas, segundo as quais pretende abordar três prioridades: promover a recuperação (assegurando a transição verde e digital), concretizar o Pilar Europeu dos Direitos Sociais e reforçar a autonomia de uma Europa aberta ao mundo. Para esse fim, Portugal compromete-se a trabalhar por uma «União Europeia mais resiliente, social, verde, digital e global».
As diligências levadas a cabo no sentido de cumprir este desígnio conhecem particular relevância no contexto da pandemia e dos múltiplos desafios que a mesma exacerbou. Com efeito, ao longo deste mandato, foram amplamente discutidas possíveis soluções e estratégias digitais nos domínios da saúde, da investigação e inovação, no sentido de capacitar a Europa e de promover a cooperação entre os Estados-Membros para responder a ameaças em matérias de saúde pública.
Todavia, também (e principalmente) a concertação económica esteve na ordem do dia. Como é do conhecimento geral, em julho de 2020, depois de árduas negociações, nasceu o “Next Generation EU”, o fundo de 750 mil milhões de euros destinado à recuperação socioeconómica decorrente da crise pandémica.
Este pacote de estímulos não consiste apenas num instrumento temporário que visa regressar à situação inicial que antecedeu a COVID-19, mas introduz, na verdade, um conjunto de elementos que preveem a modernização das infraestruturas e das políticas adotadas para desenvolver qualificações e competências adequadas a uma economia moderna e digital. É o caso do combate às alterações climáticas, da proteção da biodiversidade e da igualdade de género, premissas articuladas com a coesão europeia em matéria de competitividade económica.
Para financiar este fundo, a Comissão Europeia propôs-se a contrair empréstimos no mercado de capitais (aproximadamente 800 mil milhões de euros) e a realizar diversas operações de angariação de verbas, de entre as quais a já anunciada emissão de cerca de 80 mil milhões de euros em obrigações de longo prazo. É, como referido por Ursula von der Leyen, a ação de maior dimensão desde o Plano Marshall e superior ao impacto que 27 planos nacionais isoladamente teriam. O principal elemento deste programa consiste no mecanismo de Recuperação e Resiliência, que representa cerca de 672,5 mil milhões de euros destinados a apoiar os Estados-Membros mediante a apresentação dos respetivos planos de implementação.
Portugal destacou-se pela antecedência e celeridade com que procurou agilizar a elaboração do seu, tendo sido o primeiro a entregá-lo formalmente à Comissão Europeia em abril, que fez, entretanto, conhecer a sua intenção de começar a aprovar os primeiros planos a partir da próxima semana, motivo pelo qual tem agendada uma visita a Portugal no dia 16 de junho, à qual se seguem outros países.
O PRR português abrange projetos no valor de 16644 milhões de euros, dos quais 13944 milhões correspondem a subvenções, e considera quatro tipos de recomendações específicas dirigidas ao país. Por um lado, versa sobre o combate à pandemia sem comprometer a sustentabilidade orçamental a médio prazo; por outro destaca a promoção de emprego de qualidade e reforço da proteção social. No que diz respeito ao investimento, enumera medidas para os setores público e privado, com foco particular na dupla transição digital e climática, sem esquecer a melhoria das condições das empresas e dos cidadãos.
Não obstante, também a questão social foi particularmente relevante no decorrer da nossa presidência. A Cimeira Social do Porto, que se realizou nos dias 7 e 8 maio constitui um dos momentos de maior destaque neste semestre, tendo verificado a consolidação do compromisso para com o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, bem como para a implementação e adequação do seu plano de ação à pandemia. Divulgado pela Comissão em março, estabelece metas a atingir até 2030 a nível de empregabilidade (pelo menos 78%), formação (pelo menos 60% dos adultos) e de inclusão social (redução do risco de pobreza de pelo menos 15 milhões de pessoas, das quais 5 milhões de crianças).
Se o PRR foi alvo de um amplo escrutínio por parte da opinião pública e dos vários setores de atividade, grupos de peritos e especialistas, o mesmo não se pode dizer acerca da nossa presidência. Os contornos inerentes ao controlo e mitigação da COVID-19 são conhecidos por todos, tal como podem ser, mediante a devida consulta, os eventos e iniciativas dinamizadas este semestre. Contudo, o distanciamento crónico que separa o cidadão comum das instâncias europeias e dos seus representantes prevaleceu, condenando as expectativas acerca do envolvimento da sociedade portuguesa e do seu contributo. No próximo dia 17 de junho, decorre em Lisboa um evento destinado aos cidadãos no âmbito da Conferência sobre o Futuro da Europa (cuja sessão plenária inaugural acontece em Estrasburgo dia 19), momento que, apesar de meritório e importante, tardou em chegar e adquire contornos pouco expressivos.
Todavia, a agenda revelou-se em geral pertinente e adequada ao contexto no qual estamos inseridos. A questão que se coloca agora diz respeito ao real impacto (quer económico como social) que as alterações em curso terão a médio-longo prazo e de que forma serão monitorizadas, bem como o posicionamento dos diversos intervenientes no processo. Num quadro de declarada hostilidade em relação à China e à Rússia, a evidente tensão pós-Brexit, a insurgência de Estados-Membros e o contínuo ataque aos direitos humanos que muitos viabilizam, sem desvalorizar o regresso dos Estados Unidos à “harmonia internacional”, fragilizam a burocrática e complexa articulação que se impõe entre todos. O que se segue, só o futuro o dirá.
Nota da Edição Para aceder ao site da Presidência de Portugal na UE 202, clica aqui.
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