de Afonso Madeira Alves
Infelizmente, tenho pouco tempo. Assim sendo, este texto será forçosamente mais curto. Mas antes de começar, e para não andarmos aqui a perder mais tempo, afirmo desde já que sou claramente contra a prisão perpétua — um tema fracturante sobre o qual terei todo o gosto em dissertar virtuosamente durante horas para os portugueses que se têm mostrado confusos desde que a mesma foi abolida no recente ano de 1884. Aproveito também para desejar um bom ano e para deixar uma palavra de solidariedade somente aos estagiários do grupo Impresa.
Bom, agora resta-me mesmo muito pouco tempo.
Como qualquer outro português de bem, eu também adoro política e todos os seus gatunos. Particularmente agora que nos encontramos em clima de campanha eleitoral, há qualquer coisa de mágico em ir acompanhando uma storyline que nos conta as aventuras épico-aborrecidas de doutores e doutorados rumo aos corações puros dos eleitores de classe média — os trocadilhos com os nomes dos partidos, as jocosas referências populares customizadas no adversário, os debates sem programa eleitoral.
A política assume a sua faceta kitsch, uma forma germânica de dizer “subproduto ao dispor de quem não se cansa de dizer que adora política”. Esta abordagem patega ao fenómeno político é deliberadamente reforçada pela grande via de comunicação disponível ao cidadão em tempos de pandemia: há dias, um dos directores de informação da SIC fez questão de nos esclarecer que “não são debates, são frente-a-frentes!”.
Reforçando o moralismo insuportável deste que vos escreve — que não mais é do que inquietação e medo —, o melhor a fazer para uma geração que nasceu com um sistema democrático já consolidado será perceber que, aos nossos dias, a política está a querer-se mais acessível, mais divertida, mais fácil — e talvez até mais democrática e representativa. O empacotamento do produto como entretenimento leve é entendido como o único formato capaz de chegar a uma população que (garantem-nos) não tem foco, paciência ou aptidão para mais do que 25 minutos. Desse tempo, nada nos é garantido senão os posteriores comentários engravatados com notas no fim.
Para quem aposta o seu tempo, a discussão é temperamental, alternando subitamente entre assuntos muito importantes (SNS, Segurança Social, percentagens versus pontos percentuais) para assuntos de nicho (touradas, coligações e outras coisas que caibam numa folha A4). No final do dia, o rescaldo disponível dos debates é suficientemente alargado para que todos nos sintamos bem connosco próprios: a simples acusação “Este debate não foi capaz de gerar uma única ideia, que formato horrível” é alternável com a congratulação estética “Foi um grande debate de ideias que eu já conhecia!”. Estes debates — ou melhor dizendo, estes frente-a-frentes — servem para alinhar chacras ideológicos dos convertidos, mesmo que tenhamos a boa vontade de admitir que levarão de arrasto uns quantos indecisos. Tal como no romance de Kundera, tomamos como leve o que é incrivelmente pesado, não nos importando se tal está a agradar ao outro. O outro, neste caso, é a metade do país que já nem sequer vota.
Na relação com essa metade abstencionista, o diálogo político é curto e grosso:
— Então, tens visto os debates? – perguntamos com esperança.
— Não. – respondem-nos com um meme de Bruno de Carvalho.
Quando mais de metade não vota, recusarmo-nos a compreender a abstenção é uma atitude cobarde e arrogante. O discurso político, sempre e só no pós-eleições, condena os abstencionistas numa fantástica subversão "és tu, não sou eu", diminuindo-os a personae non gratae que não se deixam seduzir pela democracia que temos para lhes oferecer. Mesmo descontando o abstencionismo técnico que resulta de cadernos eleitorais estagnados nos anos 90 (a mais bela das metáforas burocráticas), o facto é que, num país onde mais de metade da sua população já nasceu depois do 25 de abril, a "vontade autêntica" de muitos é não querer saber de política para nada. Este "não querer saber" é sistematicamente estigmatizado pela outra metade que se mostra incapaz de se olhar ao espelho.
Ainda assim, não é surpreendente que a abstenção vá crescendo à medida que as gerações se vão renovando. Não é um problema exclusivamente nosso, mas de todas as democracias liberais que passam pela idade adulta. Aquilo que era novidade para os jovens dos anos 70 e 80 é hoje um dado adquirido que tem pouco encanto por si só: votar tornou-se um acto normal, natural e nada revolucionário. A conclusão de que o povo perdeu a sua voz é exagerada e por isso irrefletidamente repetida. O que tem acontecido não é mais do que aborrecimento causado por uma estagnação que parece eterna.
Às razões que ligam o maior nível de abstencionismo àqueles com níveis socio-económicos mais baixos, junta-se a incapacidade parlamentar de reformar um sistema eleitoral que discrimina, vicia e, ao fim do dia, desperdiça votos. É importante apontar este falhanço a quem desistiu de nos elevar por um pretenso amor à constituição, como se de um juramento de sangue se tratasse.
Uma reforma do sistema eleitoral, que actualize as vantagens de sermos um país sem tribos e que por essa razão pode aproveitar o que há de melhor entre os métodos maioritário e proporcional, é um caminho óbvio que serviria como prova de compromisso a um eleitorado que já não parece sequer acreditar que sairá bem representado, quanto mais bem governado a cada eleição. Às grandes personalidades da revolução e do Portugal da CEE já nada podemos exigir. Umas porque estão mortas e outras porque já o parecem estar. Estamos perante uma daquelas “reformas de fundo” como tanto gostam de dizer, mas que até ao dia de hoje foram incapazes de implementar. Para os que gostam de política, daquela pesada e mais a sério, poderá estar aqui a missão de uma nova geração.
Por fim, e como nunca é demais lembrar, há uma mensagem importante que não pode deixar de ser passada: que fique claro, de uma vez por todas, que sou contra a perpétua. Seja ela na prisão, na vida ou na política.
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