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A obsessão Nazi pela Arte

O documentário Hitler versus Picasso: A Obsessão Nazi pela Arte conta a história de como Hitler se apropriou das grandes belezas da Europa, de como roubou não apenas vidas humanas, mas a expressão artística de toda uma cultura. Em suma, de como a manipulação da arte funcionou como uma arma para destruir e humilhar a cultura judaica.
Paris, Junho de 1940, após a ocupação de França pelos Nazis.

Crónica de João Moreira da Silva


A 29 de abril de 1945, na véspera de terminar a sua própria vida com um tiro na têmpora direita, Adolf Hitler ditava o testamento a Traudl Junge, sua secretária privada. Em primeiro plano, apresentava-se a sua coleção privada de arte. Entre retratos de casais e famílias flamengas, quadros de natureza-morta, ou de animais, livros e fruta, o património do Führer englobava milhares de obras de arte pilhadas por toda a Europa. É esta a história contada pelo documentário Hitler versus Picasso: A Obsessão Nazi pela Arte: a história de como Hitler se apropriou das grandes belezas da Europa, de como roubou não apenas vidas humanas, mas a expressão artística de toda uma cultura. No fundo, de como a manipulação da arte funcionou como (mais) uma arma para destruir e humilhar a cultura judaica.


Os números dos saques de arte apresentados no documentário são avassaladores. Ao longo dos doze anos do Terceiro Reich, entre 1933 e 1945, mais de 600 mil obras de arte foram confiscadas a colecionadores, museus, igrejas e galerias. Mas afinal, o que explicava esta obsessão do regime nazi com a arte? Seria apenas uma perdição pessoal de Hitler? Ou também haveria razões de ordem política que justificassem estes roubos de arte?


Na verdade, a obsessão do Reich pela arte explicava-se por ambos os fatores.


Por um lado, a paixão de Hitler pela arte é conhecida pelo público em geral - em grande parte, graças à famosa história da sua rejeição (por duas vezes) pela Academia de Belas Artes de Viena. Frequentemente apelidado de “artista falhado”, o Führer abandonou a sua cidade-natal de Linz com apenas 18 anos para tentar singrar no mundo da arte (infelizmente para a humanidade, o jovem austríaco não teve muito sucesso a pintar quadros e veio a dedicar-se à política). Apesar desse desfecho negativo, Hitler continuou a colecionar obras de arte para criar um “Louvre de Linz”, de forma a expor todo o seu imenso património artístico na cidade onde nasceu e cresceu.


“O Astrónomo”, de Johannes Vermeer - Este era um dos quadros que Hitler mais desejava, tendo sido roubado à família judia Rothschild pelas tropas nazis.


Hitler não era o único alto dirigente do regime nazi obcecado com arte. A seu lado, apresentava-se Hermann Goering, “número 2” do Reich, que acompanhou o Führer desde a sua primeira tentativa de golpe de Estado, em 1923, tendo vindo a ocupar diferentes altos cargos no regime nazi. Apesar desta forte amizade, que durava desde que os dois tinham combatido juntos na primeira guerra mundial, a arte era um fator de forte rivalidade entre Hitler e Goering - os dois amigos lutavam constantemente pelas melhores peças de arte. Ao todo, estima-se que o património do braço direito do Führer estivesse avaliado em cerca de 18 milhões de euros, com obras de artistas como Da Vinci, Rafaello ou Cranach, o que lhe valeu o título de “um dos maiores saqueadores da história.”


No entanto, a justificação para o saque de milhares e milhares de obras estava longe de se resumir a uma obsessão pessoal destes dirigentes nazis com a arte. Na verdade, explica o documentário, a construção da narrativa nazi passava pela procura de uma estética absoluta que remontava aos ideias clássicos de perfeição. Paralelamente, a arte também representava um instrumento tradicional de ascensão social - e os nazis eram obcecados com o estatuto social, uma vez que eram, na sua maioria, burgueses que se tentavam aproximar da antiga Nobreza alemã através da arte.


Assim, com a ajuda de Goebbels, Ministro da Propaganda do Reich, Hitler estabeleceu um paralelismo entre a “Arte Degenerada” - o impressionismo, o expressionismo, o cubismo, o surrealismo - e os colecionadores e artistas judeus. Estes “ismos”, como o Führer os catalogava de forma depreciativa, representavam “o caos e o desvio, próprios da comunidade judaica”, sustentava a propaganda nazi. Picasso, Chagall, Kadinsky, Matisse e Monet eram artistas censurados, apenas divulgados ao público com o objetivo de expor negativamente este “comportamento desviante”, como foi o caso da Grande Exposição da Arte Alemã. A mensagem era clara: a liberdade de expressão e as linguagens externas da arte moderna vão contra a estética do Reich.


Adolf Hitler visita uma exposição de “Arte Degenerada”, em 1935.


Este repúdio da arte moderna, aliado a uma ideologia de antissemitismo, levou Hitler a declarar guerra aos artistas culpados de “desagregação cultural” do país, protestando contra o “bolchevismo cultural” e os comerciantes judeus. Os paralelismos entre a “Arte Degenerada” e a inferioridade racial eram constantes. Paralelamente, as obras de famílias judaicas, como os Goudstikker e os Rothschild, de países como a Holanda e França, eram saqueadas pelos soldados nazis. O desfecho destes roubas variava: algumas obras eram leiloadas, enquanto outras eram levadas “para casa.”


Infelizmente, o problema ainda está longe de estar resolvido: até aos dias de hoje, há peças que continuam desaparecidas. Em 2012, foram descobertas 1500 obras de arte num prédio de Munique, de artistas como Rodin, Matisse, Monet e Kandinsky - mas mais de 100 mil continuam desaparecidas. Como diz Anne Weber, co-fundadora da Commission for Looted Art in Europe, “os alemães têm feito tanto para refletir sobre os erros do passado, mas a arte é o seu calcanhar de Aquiles.” Ainda há muito a ser feito nesta área, de forma a restituir todos os roubos do regime nazi.


Hitler versus Picasso: A Obsessão Nazi pela Arte, lançado em 2018, conta todas estas histórias - desde as obras de arte preferidas de Hitler e Goering, à manipulação do regime nazi para repudiar a arte moderna e enaltecer a estética clássica. A lição final do documentário, narrado pelo ator italiano Toni Servillo e dirigido pelo realizador Claudio Poli, é uma mensagem que não vale apenas para o passado, mas também para o futuro: “a arte é um pincel que ajuda a desenhar e a apagar ditaduras. Tanto pode ser uma expressão de liberdade, como um rosto do totalitarismo.” Durante 13 anos, historiadores, académicos e intelectuais puseram-se ao serviço do Reich para contribuir para as campanhas idealizadas por Hitler. Em 1945, a maioria destes voltou às suas vidas normais. A dúvida paira no ar: se um ser humano conseguiu manipular os melhores da área para validar e sustentar a sua visão da arte com consequências nefastas, será que outros conseguirão voltar a fazê-lo?

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