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A revanche Alemã contra a bazuca Europeia

  • Foto do escritor: Crónico.
    Crónico.
  • 16 de mai. de 2020
  • 6 min de leitura
A verdade é que esta decisão pode significar a abertura de uma “caixa da pandora” que poderá gerar instabilidade, insegurança e incerteza que, a muitos níveis, poderá causar desrespeito pelos princípios fundamentais em que assenta a construção da União Europeia

Crónica de Gonçalo Mesquita Ferreira e Marco Gamaliel Alves


Ilustração de João Moreira



Para uma parte importante da comunidade jurídico-cientifica, que já se pronunciou sobre este tema, aquilo que aconteceu no passado dia 5 de maio, e que nos foi dado a conhecer através do comunicado de imprensa nº 32/2020 do Tribunal Constitucional (TC) Federal Alemão, trata-se, pura e simplesmente, de uma revolta constitucional da Alemanha contra a União Europeia.


No objeto da decisão proferida pelo TC Alemão está a atuação de duas das mais importantes instituições da União Europeia: o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) e o Banco Central Europeu (BCE), que é acusado de exceder as competências da União - e, em consequência, as competências que lhe foram a si atribuídas pelos Tratados - nas suas decisões relativas ao programa de compra de dividas do setor público. Desta forma, o TC Alemão considera que está em causa a violação do artigo 123º do Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) que regula a matéria em apreço.


Para além disso, considera que as medidas adotadas pelo BCE no programa de Quantitative Easing atentam contra o princípio da proporcionalidade, consagrado no artigo 5º nº1 e 4 do TFUE, cumulando esta pronuncia com um ultimato para que a instituição, liderada por Christine Lagarde, fundamente as medidas no período de 3 meses, sob pena de o Bundesbank deixar de participar na execução desse plano.


Por seu turno, o TJUE, à luz da mesma decisão (do TC Alemão), é acusado de ter feito um julgamento ultra vires, i. é., um julgamento onde se pronuncia sobre matérias que excedem a sua margem de jurisdição, uma vez que a 11 de Dezembro de 2018 o TJUE deu cobertura e sustentação jurídica à atuação do BCE.


Recorde-se que tal decisão surge depois do Tribunal Alemão ter enviado duas questões ao TJUE, através do mecanismo do reenvio prejudicial previsto nos Tratados, que por sua vez concluiu que o programa não violava o que era previsto no tratado em matéria de financiamento monetário, nem as competências do BCE para recomprar dívida pública.

Neste contexto é importante relembrar – até porque falaremos das implicações políticas desta decisão – que umas das características que têm marcado o TJUE é o facto deste ser o órgão que mais tem contribuído para a integração política da União através da lei.

Se, até à data, podemos concluir que essa “agenda política” do TJUE tem vindo a ser cumprida sem grandes alaridos jurídicos público-mediáticos, esta decisão pode significar a abertura de uma “caixa da pandora” que poderá gerar instabilidade, insegurança e incerteza que, a muitos níveis, poderá causar desrespeito pelos princípios fundamentais em que assenta a construção da União Europeia.


Este é, de resto, um braço de ferro que já vinha a durar a algum tempo. Daí que para muitos esta decisão acaba por não ser de todo surpreendente. Do ponto de vista constitucional, estamos até perante um dos maiores exemplos daquilo a que se chama Pluralismo Constitucional, tendo sido amplamente teorizada por autores como Miguel Poiares Maduro. Este conceito venceu a ideia bipolar do direito supranacional, pois a UE não deve ser entendida de um ponto de vista monista (supremacia do Direito da União sobre o Direito nacional) ou dualista (duas ordens jurídicas distintas, sem admissão de uma qualquer interconexão). O Pluralismo constitucional permite-nos entender a relação entre o Direito da União e o Direito nacional, como uma relação de diálogo, procurando consensos e convergências. Este é um diálogo que é tido desde logo entre tribunais constitucionais e TJUE, sendo que podemos encontrar variadas concretizações desse diálogo, nomeadamente através do reenvio prejudicial.


No entanto, esta decisão do TC alemão contrariando, sem mais, o TJUE e colocando em causa a atuação do BCE, não é o que se espera deste pluralismo sustentado. Ainda para mais ocorrendo numa altura em que foram adotadas medidas semelhantes, com vista a dar resposta à crise económica gerada pela Covid-19. Neste ponto, é expectável esta decisão do TC alemão provoque consequências negativas, desde logo, colocando em causa a resposta da UE à pandemia.


Quando o ex-Ministro das Finanças alemão, Wolfgang Shauble, afirmou, e bem, que esta sentença sobre o programa de compra de ativos do BCE pode colocar em causa o futuro da Zona Euro, há que reconhecer mérito ao argumento. Não podemos esquecer que o Deutsche Bundesbank (DB) tem uma subscrição de 21,5 % do capital do BCE, sendo o membro mais importante.


Por outro lado, é preciso sublinhar que esta medida não vem colocar em causa a relação da Alemanha com a UE ao contrário do que alguns querem fazer crer. Romano Prodi já veio afirmar que a Alemanha começa a perder fé no projeto europeu. Não devemos entender desse modo. A Alemanha continua a acreditar de pedra e cal na União e o grande argumento do TC alemão parte da invocação do princípio da proporcionalidade, um princípio basilar da UE. Para além disso, recorreu-se ao reenvio prejudicial, ou seja, não se procurou evitar o contacto com o TJUE, ao contrário do que fizeram alguns tribunais constitucionais, como foi o caso português durante os anos do programa de ajustamento.

Acontece que já todos sabemos que as decisões do TJUE são, por vezes, decisões mais políticas do que propriamente jurídicas. Este foi um desses casos. O BCE ao prosseguir com o plano de Draghi de “salvar a Europa a todo o custo”, implementando a bazuca, fez com que o BCE fosse possivelmente além das suas competências, o que não pode deixar de ser esmiuçado. Se todos desejamos um projeto europeu democrata e transparente, não podemos admitir instituições com mandatos independentes que vão além daquilo que ficou expresso nos Tratados. Essa é uma das bandeiras de muitos eurocéticos.


Se quisermos ir um pouco mais além, o TC alemão mais não está a fazer do que a fazer valer princípios constitucionais europeus. Agora, a forma como o fez, colocando em causa a decisão do TJUE, abre um precedente perigoso, pois outros tribunais poderão segui-lhe as pisadas, assim como governos, como aconteceu com a reação do governo polaco. Este é o pior timing. Numa altura em que fazemos frente a uma crise pandémica, com graves consequências económicas, e numa altura em que os discursos populistas iliberais começam a ganhar um peso de difícil controlo, facilmente conseguimos daqui adivinhar um aproveitamento que será feito na decorrência desta decisão. A sentença do TC alemão parece fazer frente ao projeto europeu, mas o intuito não é esse. No entanto, será explorado nesse sentido.


Poderá, consequentemente, resultar uma solução que permita não colocar em causa a credibilidade das instituições europeias e manter, ainda assim, uma boa relação entre os tribunais? A solução terá de passar pela diplomacia e pela forma de algum modo indireta e encapotada, como estes temas são por vezes tratados. O TC alemão deu 3 meses ao BCE para responder e justificar a proporcionalidade das suas medidas. No entanto, a verdade é que o TC alemão se dirigiu às instâncias nacionais, nomeadamente ao DB. Por outro lado, se o BCE respondesse diretamente ao TC alemão aí sim estaria a abrir um precedente verdadeiramente perigoso ao colocar em causa a palavra do TJUE e a credibilidade política do BCE. No entanto, parece-nos viável que se o DB se dirigir ao BCE e este responder apresentado justificações que permitam compreender a proporcionalidade do plano Draghi, de algum modo o TC alemão poderá ficar satisfeito.

Em suma, do ponto de vista constitucional, está aqui um exemplo do que pode ocorrer em pleno Pluralismo Constitucional. O equilíbrio de forças acaba por ser mais ténue do que se pensa, no entanto, a existência de várias vozes - leia-se tribunais - permite um maior controlo do projeto europeu. Ainda assim, acreditamos que a voz do TJUE deve continuar a ouvir-se mais alto e só em casos flagrantes é que deverá ser colocada em causa pelos tribunais constitucionais dos estados-membros, dentro da lógica Solange. Será esta uma dessas situações? Possivelmente. Se estamos perante uma decisão política do TJUE, sendo esta uma situação que já se vinha a agravar de há uns tempos para cá, então agora o TJUE começará a acautelar melhor as suas decisões. Porém, as consequências políticas da sentença do TC alemão poderão ser demasiado gravosas quando colocadas na balança da União, um projeto que tem sofrido múltiplos golpes nos últimos anos

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