"Eu nunca gostei de matemática" é a resposta que mais vezes recebo quando digo que estudo matemática. Esta disciplina parece atrair um constante desprezo por parte da maioria das pessoas. Contudo, a matemática consegue propulsionar um desenvolvimento de um raciocínio que vai além dos conceitos escolásticos... e até além da intuição humana!
Em parceria com:
Crónica de Lia Malato Leite
Estudante de Mestrado em Matemática, FCUL
E se a matemática não fosse apenas uma ferramenta para passar os anos de escola e fosse uma verdadeira ferramenta de instrução pessoal a utilizar, a fim de desvendar factos contra-intuitivos e enganadores do dia-a-dia? Todos nós fomos vítimas de frustração devida à incompreensão da matemática, incompreensão esta devida, nomeadamente, a conceitos que nos parecem abstratos... demasiado abstratos... sem qualquer motivação palpável... E é nesses momentos que nos questionamos sobre a necessidade de aprender e interiorizar conceitos cujo valor é apenas revelado a futuros matemáticos durante longos anos de estudo na faculdade.
Será a matemática refém de uma comunicação e divulgação inapropriadadamente frias e desligadas da realidade, o que tem por consequência um público-alvo refém da impenetrabilidade de conceitos abstratos? As abordagens comummente escolhidas para o ensino da matemática parecem levar a um mundo no qual o interesse pela matemática não só tem tendência a desaparecer, mas também em muitos casos nem sequer foi criado.
É importante reconhecer que a vasta maioria da população não tem interesse em enveredar pela via da matemática, o que conduz a que um ensino baseado em teoria pura e dura não possa progredir sem proporcionar uma visualização objetiva e prática dos conceitos. Não obstante, a matemática é ensinada e lecionada de uma forma tão peculiarmente afastada da realidade, que é exatamente esta vasta maioria que se manterá longe de querer aprendê-la. Assim sendo, é fulcral despertar o entusiasmo de maneira eficaz, de modo a apelar à curiosidade natural do ser humano, matemático ou não.
No meio de uma apresentação constante de fórmulas não descomplicadas, de exemplos repetitivos que nos desinteressam e de um nevoeiro que ofusca a utilidade dos conceitos, o que deve ser feito para ganhar o interesse desaparecido de alunos e adultos pela matemática? Que tal enveredar, por exemplo, por uma via que mostre indubitavelmente que a intuição pode ser traiçoeira e que a matemática consegue trazer respostas? E mostrar que perceber matemática é portador de frutos para o dia-a-dia e não serve apenas para passar nos testes escolares, ou até que a matemática permite explicar situações que parecem impossíveis, mas que são, contudo, bem reais.
Vejamos... Sabia que muitas promoções nos anúncios de supermercados ou lojas conhecidas não correspondem à realidade? De facto, não é raro que, ao calcularmos as percentagens publicitadas nos anúncios, o valor não esteja certo. Experimente. Ficará surpreendido.
Okay, então a matemática permite descobrir quando estamos a ser enganados a nível comercial, o que, por si só, já não é nada mau. Mas vamos a um exemplo que é espantosamente contra-intuitivo.
Um casino está a desenvolver um novo jogo. O jogo é simples: lançar um dado de seis faces, as vezes necessárias até obter 20 vezes consecutivas a face 3 ao ritmo de um lançamento por segundo. Se conseguir obtê-lo em menos de um quarto de hora, recebe a módica quantia de 50.000€. Valerá a pena? Quanto tempo terá de jogar, em média, até obter 20 lançamentos consecutivos com a face 3? Conseguirá um jogador ganhar o jogo em menos de 15 minutos?
Permitam-me que inclua o seguinte parágrafo para dar tempo ao leitor para encontrar uma resposta. Eis um facto trivial:
A extinção dos dinossauros ocorreu há cerca de 66 milhões de anos.
Já pensou na resposta ao problema? Se tiver chegado à conclusão de que precisaria de horas, dias, semanas ou meses, ainda não tem a resposta certa.
Na verdade, para obter uma resposta a estas questões existenciais do problema considerado são necessários conhecimentos abstratos da Teoria das Probabilidades... Felizmente, os matemáticos já sacrificaram as suas vidas a estudar uma versão mais geral deste problema (o tema de estudo intitula-se "eventos recorrentes").
E agora? Será preciso um ano? Ou bastarão cinco anos? Ou serão necessários dez anos para obter 20 lançamentos seguidos com a face 3 ao ritmo de um laçamento por segundo?
Bem, e se a única maneira para que tal acontecesse fosse que o jogador tivesse nascido antes da extinção dos dinossauros e que estivesse desde o nascimento e até hoje a fazer lançamentos do dado ao ritmo de um lançamento por segundo? Volte ao parágrafo do facto trivial: a extinção dos dinossauros ocorreu há cerca de 66 milhões de anos. Mas então, qual é a resposta ao problema? Na realidade, o tempo médio para que aconteçam 20 lançamentos seguidos com a face 3 no topo é de aproximadamente 147 milhões de anos... ou seja, em média são necessários mais de 4.638.871.944.000.000 (4.638 milhões de milhões, 871 mil milhões e 944 milhões) lançamentos para ganhar o jogo do casino. Esqueça este casino, os criadores deste jogo não têm a intenção de renunciar a 50.000€.
A situação acima descrita mostra claramente que a intuição humana nem sempre é de confiança e que a matemática até consegue ajudar a não entrarmos em jogos de casino que nos fazem perder com toda a certeza. No geral, a matemática ajuda a desenvolver competências que, uma vez desenvolvidas, nos ajudam a não ser tão facilmente traídos pela nossa intuição. Contudo, a matemática é poucas vezes apreciada, e uma das razões é
parecer demasiado distante das nossas vidas.
O que aconteceria se o ensino da matemática fosse regularmente acompanhado por um desafio constante à nossa perceção do mundo e da realidade? A frequente incompreensão dos conceitos matemáticos aprisiona a matemática num ciclo vicioso de hostilidade pelo facto de o estudo desta parecer ser tão repleto de obstáculos impenetráveis. É fundamental associar uma motivação concreta ao desenvolvimento do raciocínio matemático. A aquisição de novos conceitos e conhecimentos matemáticos tem de ser lecionada de modo a dificultar o desinteresse de cada aluno, estudante ou adulto. Quer esta motivação seja pela utilidade, quer pelo espanto, quer por outros meios, a matemática tem de ser uma descoberta pessoal a cada instante e não ser meramente assimilada a um obstáculo impenetrável sem qualquer relação com a própria perceção do que nos rodeia.
Comments