Enquanto que muitos céticos continuam a desvalorizar esta pandemia, o vírus não dá sinais de abrandar. Não me parece desejável ter de esperar que a bomba caia no jardim para a tratar como uma coisa real. Use-se a imaginação para visualizar as bombas invisíveis que nos rodeiam: trata-se de uma jibóia a comer um elefante e não um chapéu.
Crónica de João Moreira da Silva
Estudante de Direito na FDL
No dia 22 de março, entrou em vigor o estado de emergência em Portugal. Nesta crónica, vou referir-me a um estado de emergência no sentido literal da palavra “emergência” e não no sentido jurídico - deixo isso para quem percebe do assunto.
Quando pensamos num ‘estado de emergência’ lembramo-nos, em regra, de autênticos cenários apocalípticos: bombas a cair na nossa rua, tanques militares a entrar pelas cidades, tsunamis, tremores de terra, incêndios e por aí fora. Talvez seja por essa razão que parte da população mundial sente que o as circunstâncias em que vivemos não sejam suficientemente graves para atingir o seu ‘ponto perfeito’ de calamidade. Uma calamidade al dente. Compreendo que, sem os tiros e os efeitos visuais, seja mais complicado visualizar o problema. Infelizmente, esta saga da COVID-19 não foi realizada pelo Michael Bay.
Talvez seja precisa alguma imaginação para tal. Na obra de Saint-Exupéry, o Principezinho fez o seu primeiro desenho e decidiu mostrá-lo às "pessoas grandes", para saber se este as assustava. Para grande frustração do Principezinho, as "pessoas grandes" não ficaram assustadas com o seu desenho de uma jibóia a digerir um elefante. Todas lhe respondiam: “Como é que um chapéu pode meter medo?”. Frustrado, o Principezinho constatava que “as pessoas grandes nunca percebem nada sozinhas”.
Podemos considerar outra hipótese para esta situação: talvez esta população não queira, de forma deliberada, saber a verdade sobre a emergência do vírus. Jeanne Hagenbach, investigadora no Departamento de Economia da Sciences Po, conduziu uma investigação em que abordou a ideia de o agente económico formar “crenças motivadas” que servem como uma forma de garantir o seu bem-estar, em vez de encarar a realidade. Estes serão os casos, por exemplo, de pessoas que preferem não saber como funcionam os matadouros para continuar a comer carne em paz, os fumadores que preferem ignorar as consequências para a sua saúde, ou simplesmente alguém que acredita que fez um bom negócio no supermercado local.
O grande problema desta questão, de acordo com Hagenbach, está em saber como informar estes agentes – ou se devem ser informados de todo, dado estarem a fazê-lo para garantir o seu bem-estar físico e psicológico. Este problema só se torna mais complexo quando nem toda a informação é fiável, em especial nas principais redes sociais. Mas não vou falar sobre áudios de Whatsapp, deixo os perigos da comunicação para outro dia.
Tendo em conta o dilema de Hagenbach, a minha resposta instintiva será a de que, em certas circunstâncias, possa ser aceitável que o agente ignore a informação real. Será, por exemplo, o caso da promoção do supermercado, que só prejudica a pessoa que faz a compra e que se deixa enganar de forma voluntária. No entanto, em casos de pandemias mundiais, com números de infetados a crescer de forma assustadora diariamente, não me parece razoável que alguém assobie para o lado e continue a fazer a sua vida como se nada fosse.
Na minha opinião, esta linha de ‘informação obrigatória’ estabelece-se a partir do momento em que ignorar a informação verdadeira constitui um perigo para terceiros. Apesar do teletrabalho e das aulas à distância, continuamos a viver em comunidade.
Infelizmente, a história recente diz-nos que só encaramos os factos quando estes se tornam uma coisa ‘real’ para nós. Há uns meses, poucos eram os que encaravam este vírus como uma ameaça que pudesse chegar a estas proporções. Estava distante, do outro lado do mundo. Ninguém da nossa esfera, país, continente, tinha corona. Para quê preocuparmo-nos?
O caso da morte de Rock Hudson é um exemplo paradigmático desta lógica. Em 1985, Rock Hudson foi a primeira grande celebridade a morrer de SIDA nos EUA, o que causou uma grande onda de choque por todo o país. Até aí, a SIDA era encarada como uma doença dos homossexuais, que não tocava o ‘mundo real’, pois pertencia apenas a um grupo altamente marginalizado da sociedade da época. No dia em que Rock Hudson morreu, o congresso americano aprovou um investimento de 190 milhões de dólares na investigação para a cura da SIDA. Passados poucos dias, foram injetados mais 189.7 milhões de dólares para este fundo. A morte de Hudson revelou-se profundamente marcante na mudança de paradigma nos EUA em relação à SIDA. Nessa altura, apesar de já existirem 12 mil casos confirmados de SIDA nos EUA, que duplicavam a cada 10 meses, os cidadãos comuns continuavam a ignorar a doença. A SIDA só se tornou real para a população americana quando se aperceberam que podia chegar às “pessoas normais”. Até lá, eram agentes com “crenças motivadas”, como referia Hagenbach, que ignoravam de forma deliberada a informação existente – até ao momento em que se aperceberam que lhes podia tocar.
Enquanto que muitos céticos à escala global continuam a desvalorizar esta pandemia – seja por falta de imaginação ou por quererem preservar a sua saúde mental – o vírus não mostra intenções de abrandar. Não me parece desejável ter de esperar que a bomba caia no nosso jardim para a tratar como uma coisa real. Use-se a imaginação para visualizar as bombas invisíveis que nos rodeiam: trata-se de uma jibóia a comer um elefante e não de um chapéu. E caso falte imaginação, analisem-se os números. Como Saint-Exupéry escrevia, “as pessoas grandes adoram os números”.
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