Este texto tem como objectivo somente incitar a reflexão no leitor. Não cabe, portanto, na intenção do cronista apresentar soluções detalhadas para resolver o problema apresentado. Esse trabalho poderá porventura ficar para uma outra oportunidade.
Segundo o Investigate Europe, são injectados cerca de 137 mil milhões de euros por 28 dos 30 países da Zona Económica Europeia para promover o consumo de combustíveis fósseis, entre benefícios e subsídios. Perante tamanha contradição, como pode a Europa cumprir os objectivos anunciados pelo Pacto Ecológico Europeu?
Crónica de António Vaz Pato
Estudante de Biologia, FCUL
Estávamos no final de 2019 e a Europa escrevia o primeiro parágrafo de um novo capítulo de política climática no continente. Em Dezembro desse ano, Ursula von der Leyen, recém-nomeada para a presidência da Comissão Europeia (CE), anunciava o já aguardado Pacto Ecológico Europeu (ou Green Deal, na gíria), um plano conjunto dos Estados-membros da União Europeia que definia por fim uma trajectória rumo à neutralidade carbónica em 2050. Depois de anos de avisos e alertas sem resposta e iniciativas tímidas de alguns países, a Europa parecia finalmente abraçar um acordo ambicioso para a transição energética e industrial. O PEE, citando o site da CE, propõe um plano de acção que permitirá à UE “impulsionar a utilização eficiente dos recursos através da transição para uma economia limpa e circular, restaurar a biodiversidade e reduzir a poluição.”. Para tal, a concomitante Lei Europeia do Clima (LEC) assegura o cumprimento do compromisso político, elencando as medidas necessárias para atingir o objectivo principal, entre elas, "o investimento em tecnologias não prejudiciais para o ambiente, o apoio à inovação industrial e a descarbonização do sector da energia". O orçamento previsto para o plano de investimento do PEE implicará a mobilização de 1 trilião de euros na próxima década para financiar a transição.
A década começava com boas notícias.
Todavia, a pandemia não deixou os mais optimistas respirar. A crise sanitária dos últimos meses pôs um ponto final (por agora) no crescimento económico. Actualmente, prevê-se uma crise económica com profundas consequências globais. A covid-19 levantou desafios em áreas como a saúde, a educação e, inevitavelmente, o clima. Ao longo da pandemia, as dúvidas adensaram para os mais cépticos quanto à execução do plano de acção climática. E o clímax do cepticismo parece ter sido atingido esta semana, com a publicação do mais recente relatório do grupo Investigate Europe. Segundo estes investigadores, são injectados cerca de 137 mil milhões de euros por 28 dos 30 países da Zona Económica Europeia para promover o consumo de combustíveis fósseis, entre benefícios, subsídios, isenções fiscais à aviação e licenças gratuitas de emissão de gases de efeito estufa (GEE) para indústrias do cimento, da celulose, de metais e de químicos. Este valor, equivalente a 83.4% do orçamento anual da UE, abastece a máquina que acelera o aquecimento global. Perante tamanha contradição, como pode a Europa cumprir os objectivos anunciados pelo PEE?
Neste momento sabemos que não é possível conciliar estas duas realidades antitéticas. Não podemos escoar dinheiros públicos úteis a uma transição urgente para indústrias que, da forma como funcionam actualmente, só servem para agravar os problemas já existentes. A solução aflora-se evidente para o leitor que, como eu, se vê revoltado com estes números. Estes subsídios e benefícios deveriam ser transferidos para a descarbonizarão da indústria e para o investimento em tecnologia verde, renovável e limpa, tal como nos é descrito pelas obrigações da LEC. Os países, como tal, devem acabar o mais rapidamente possível com estes subsídios e começar a exigir uma taxa às empresas que as obrigue a pagar pela poluição que emitem. Mas uma solução óbvia e consensual encontra muitos obstáculos por parte de quem beneficia do sistema tal como ele está montado há décadas. Os sectores que consomem mais petróleo, carvão e gás natural são precisamente os sectores que vêem os seus interesses salvaguardados por fortes lobbies. A sua influência na política é enorme e o poder económico das indústrias que eles representam é utilizado como moeda de troca de forma a que as coisas permaneçam tal como estão. E os seus argumentos ganham peso no panorama actual da crise.
Dizem os lobbistas que as taxas e o fim de isenções e benefícios significariam certamente uma perda de competitividade económica destas empresas no mercado internacional. Por outro lado, se a Europa impusesse estas leis taxativas, as empresas procurariam rapidamente um país onde essas taxas não existissem para prosseguir com a sua produção. Perdendo indústrias, perdem-se postos de trabalho, o crescimento económico desacelera e a Europa perde força económica. Outros argumentam que a Europa já faz muito mais em termos de política ambiental em comparação com o resto do mundo e que estas políticas ambiciosas são fruto de um excessivo voluntarismo ambiental que em nada altera a situação. Face a isto os governos encolhem os ombros e resignam-se com a sua “impotência”. Eu compreendo-os. É mais fácil manter um sistema lucrativo a “bombar" milhões de toneladas de CO2 para a atmosfera todos os anos do que procurar soluções. Os responsáveis políticos foram com certeza inspirados pela filosofia do mestre Pangloss quando nos diz, em Cândido, que “tout est au mieux”, dado que vivemos no “meilleur des mondes possibles.”. Felizmente, Voltaire quis passar uma mensagem verticalmente oposta a esta do seu Pangloss.
Em Portugal, onde já se reduziram muitos subsídios nos últimos anos, incluindo no Imposto sobre Produtos Petrolíferos, e onde já foi anunciado o fecho das centrais eléctricas movidas a carvão (Pego em 2021 e Sines em 2023), o valor dos benefícios a empresas consumidoras de combustíveis fósseis montam aos 867,5 milhões de euros (longe dos 441 milhões de euros calculados no OE), valor este apurado pela Investigate Europe. O status quo permanece escondido por boas intenções e políticas fáceis e populares. Estamos completamente dependentes de um sistema que faz valer as suas qualidades a curto-prazo, esquecendo por completo todos os prejuízos e catástrofes que a sua acção contínua provocará a longo-prazo. Aliás, os efeitos já são bem visíveis. Dizemos estar conscientes das alterações climáticas, mas pelos vistos fingimos que isto nada tem a ver com o aumento dos períodos de seca, com o maior número de incêndios florestais e com a consequente escassez de água e desertificação dos solos. Onde está a vontade política e social para mudar isto de uma vez por todas? O Governo não se pode refugiar numa retórica tácita que nos vende um discurso como "o nosso contributo tem pouco peso na balança". Desenganem-se: o exemplo e a iniciativa são muitos importantes para mudar o paradigma das coisas seja em que área for.
Este é sem dúvida um problema complexo, até porque não podemos ignorar que pequenos produtores agrícolas, pequenos consumidores e pequenas indústrias beneficiam destes subsídios. Se retirarmos isenções e taxarmos os combustíveis, todos nós pagaremos por isso. Não é justo pedirmos um pagamento extra a quem não pode E, por essa razão, o fim dos subsídios terá de ser gradual e acompanhado não só por uma alocação do investimento para alternativas que permitam atingir a neutralidade carbónica, mas também por mecanismos que compensem e ajudem estas entidades mais pequenas na transição. Temos de dar opções para que ninguém fique prejudicado por dar um passo em frente no sentido da redução da emissão de GEE. E nesse capítulo a inação tem consequências devastadoras.
Um plano ambicioso precisa de metas e medidas à altura do desafio. Não podemos continuar a alimentar um modelo industrial e económico com os dias contados. Os recursos e o investimento público têm de ser urgentemente reorientados para uma restruturação verde, limpa e sustentável do sistema económico. A Europa tem condições para ser o exemplo e assumir a liderança mundial no que diz respeito à acção climática. De nada nos vale continuarmos a ignorar o enorme elefante climático na sala. Desfaçamos de uma vez por todas as contradições hipócritas e sejamos coerentes com os nossos objectivos. O tempo, infelizmente, vai ficando cada vez mais escasso.
P.S. Para o leitor que tiver curiosidade em ler mais sobre o assunto, sugiro a reportagem disponível no PÚBLICO, do investigador Paulo Pena da Investigate Europe. Lá poderão encontrar em detalhe números, estatísticas e testemunhos-chave de investigadores e personalidades ligadas à política climática.
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