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As imprecisões custam atrasos


Debatida há largos anos, a despenalização da morte medicamente assistida regressou ao Parlamento nesta legislatura, desta ­vez com perspetivas favoráveis à sua aprovação. Tal cenário confirmou-se e os cinco projetos de lei que deram entrada na Assembleia da República (AR) foram aprovados na generalidade em fevereiro de 2020.

de Francisco Lemos Araújo


Cartoon de Luísa Figueiredo




Alguns alegaram falta de legitimidade dos deputados para esta discussão, uma vez que nem todos os partidos tinham inserido a eutanásia nos seus programas eleitorais. Por isso, atendendo à sensibilidade do tema, o passo sensato seria o de convocar um referendo.



É verdade que parece haver na sociedade portuguesa uma tendência crescente da aceitação da despenalização da morte medicamente assistida, mas a mesma não deixa de ser controversa. É um tema extremamente complexo que provoca enormes divisões, principalmente dentro de cada um de nós. Diria que a maioria dos portugueses tem dificuldades em chegar a uma certeza sobre a matéria.



Sou tendencialmente a favor da despenalização por considerar que quem se encontre numa situação altamente angustiante e irreversível deve poder escolher morrer com dignidade, de acordo com aquela que é a sua própria conceção de dignidade. No entanto, e sabendo que a permissão da eutanásia não me obriga a recorrer a ela caso me seja possível fazê-lo, sou sensível ao argumento de se passar uma mensagem contraditória com a de uma sociedade que protege a vida dos seus cidadãos e não tolera a sua morte fora daquilo que seria uma morte “natural”.


Por isso, creio que teria sido acertado ouvir os portugueses. Assim, dissipar-se-iam as dúvidas sobre a orientação do país e reforçar-se-ia o processo legislativo que corria. Os deputados assim não o entenderam e chumbaram a realização do referendo. O processo seguiu e no início de 2021, mais precisamente a 29 de janeiro, a despenalização da morte medicamente assistida foi aprovada pela primeira vez em votação final global. Sem surpresas, Marcelo Rebelo de Sousa enviou o diploma ao Tribunal Constitucional (TC) e os juízes entenderam que existiam inconstitucionalidades que se prendiam, essencialmente, com a excessiva indeterminabilidade dos conceitos usados.



Apesar de contestada inicialmente, esta decisão trouxe um esclarecimento importante, isto porque os juízes do TC não levantaram nenhuma oposição de fundo ao direito à eutanásia, antes pelo contrário. Consideraram que “o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias. O contrário seria incompatível com a noção de homem-pessoa, dotado de uma dignidade própria, que é um sujeito auto-consciente e livre, autodeterminado e auto-responsável, em que se funda a ordem constitucional portuguesa.”. O diploma foi então devolvido à AR e no dia 5 de novembro foi aprovada uma nova versão final que incluía a definição de vários conceitos.



Para surpresa de muitos, esta também não foi promulgada pelo Presidente da República (PR), por existirem aparentes “contradições no diploma quanto a uma das causas do recurso à morte medicamente assistida”. Comparando as duas versões do decreto parlamentar e lendo os argumentos do PR, confesso que não percebo a contestação a esta decisão.



No artigo 2.º da primeira versão aprovada, a existência de “doença incurável e fatal” era uma das exigências para a antecipação da morte medicamente assistida não punível. Apesar de não estar densificada, “doença incurável e fatal” era a única formulação utilizada.



Na versão mais recente, os deputados, de forma coerente, mantiveram o conceito de antecipação da morte medicamente assistida não punível (agora no artigo 3.º, n.º 1) e criaram um novo artigo 2.º, onde incluíram uma série de definições, o que parecia ser suficiente para resolver as questões levantadas pelo TC. Ora, acontece que a nova versão acaba por se revelar um problema maior do que à primeira vista poderia parecer.



Logo na alínea d) do artigo 2.º, escolhe definir-se “doença grave ou incurável” e não “doença incurável e fatal” – que é a uma das exigências referidas no artigo 3.º, n.º 1 –, sendo a definição apresentada a seguinte: “doença grave que ameace a vida, em fase avançada e progressiva, incurável e irreversível, que origina sofrimento de grande intensidade”. Ou seja, a definição de “doença grave ou incurável” acumula a gravidade e a incurabilidade, o que na verdade transforma a doença em grave e incurável.



O segundo problema levanta-se com a delimitação das pessoas que podem recorrer à morte medicamente assistida. Como referi, o artigo 3.º, n.º 1 manteve como uma das exigências a existência de uma doença incurável e fatal. No entanto, no n.º 3 do artigo 3.º já se diz que pode recorrer à morte medicamente assistida quem tenha uma doença grave ou incurável. Temos, no mesmo artigo, várias versões da mesma exigência sem aparente explicação.



Ao olhar para esta confusão, em que num artigo se usa um conceito, no seguinte usa-se outro e dentro do mesmo se faz uso de dois distintos, é mais do que natural concluir que a determinabilidade e coerência que se exigia não existe. Isto porque, como diz o Presidente da República, “uma coisa é uma doença grave, outra uma doença incurável, outra ainda uma doença fatal”. Não podemos pegar nos três, pôr na tômbola e ir usando conforme sai.


Como o TC fez questão de referir, estes conceitos convocam diferentes perspetivas sobre o caminho que queremos seguir no tema da eutanásia: se exigimos que haja uma doença fatal ou em fase terminal (como ocorre no Canadá, na Colômbia e em alguns estados federados dos Estados Unidos da América), ou, pelo contrário, admitimos que doentes que não estejam nessa situação recorram também à morte medicamente assistida (seguindo os exemplos dos Países Baixos, Bélgica, Luxemburgo ou, mais recentemente, da Espanha).



Parece-me que haverá uma nova aprovação na próxima legislatura, mesmo que com uma mudança na configuração da AR. Espero é que os partidos tenham a capacidade de definir um rumo, explicá-lo aos portugueses na campanha e segui-lo de forma coerente, evitando ziguezagues, para que uma lei da eutanásia possa ser aprovada sem levantar interpretações dúbias.



Esta técnica legislativa de usar diferentes conceitos indeterminados para um mesmo critério não costuma dar bom resultado, ainda para mais numa matéria tão sensível como esta. Sendo tendencialmente a favor da despenalização da eutanásia, não alinho pela sua concretização a todo o custo. É preferível uma lei que demore mais tempo, mas seja coerente e percetível, a uma que seja demasiado ambígua, correndo-se o risco de interpretações demasiado restritivas ou amplas, fugindo-se do seu propósito.



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