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Ciência em sociedade: deve a política ‘seguir a ciência’?

  • Foto do escritor: Crónico.
    Crónico.
  • 17 de set. de 2021
  • 6 min de leitura
As considerações morais e políticas que são fundamentais para a escolha de políticas públicas devem seguir de um processo democrático, e não das considerações de peritos em matérias de saúde ou virologia.

de Salavador Pitta Gouveia


Seguir a ciência!’ – este é o mote que, alegadamente, está por trás das decisões de vários governos na gestão da pandemia. Nas conferências de imprensa dadas pelo primeiro-ministro britânico, por exemplo, a expressão ‘follow the science’ é usada frase sim, frase não. E em Portugal, António Costa chegou a pedir um ‘esforço de consensualização científica’ sobre que medidas adotar para a mitigação da pandemia nas suas diferentes fases, como que requerendo dos cientistas um algoritmo que decidisse que medidas adotar a cada momento. A ideia subjacente é a de que, numa crise sanitária, cabe à política seguir o que a ciência comanda para mitigar a crise da forma mais eficiente possível. No limite, não há espaço para agência política e social. Neste modelo ‘follow the science!”, o cientista analisa a informação, na qual baseia as suas previsões, as quais motivam as suas decisões. Assim, a ciência, que é neutra e imparcial, determina o que deve ser feito, sem vieses nem subjetividades inerentes à política. Com este modelo de como interagem a ciência e a política, é natural que decisões verdadeiramente políticas sejam interpretadas como mero resultado de um processo científico. Mas o modelo está errado.

Decisões na incerteza

O erro mais saliente do modelo ‘follow the science!’ resulta da ignorância do facto de que situações que envolvem elevados graus de indeterminação, como é uma situação pandémica, requerem escolhas políticas especialmente importantes. Reconheçamos de início que uma situação pandémica como a que temos vindo a atravessar implica que os cientistas, com a informação e ferramentas que têm disponíveis, são muitas vezes incapazes sequer de determinar uma probabilidade exata de certo cenário se realizar (muito menos de prever que cenário vai de facto realizar-se). Nestas situações, diz-se que nos encontramos num cenário de incerteza ou ambiguidade. Os modelos utilizados pelos cientistas para prever diferentes cenários de como a pandemia vai evoluir incorporam, mais ou menos explicitamente, esta incerteza. Por exemplo, é impossível determinar de forma exata a probabilidade de, na ausência de medidas de distanciamento social, um décimo da população mundial morrer devido à COVID-19 (um evento muito extremo). O máximo que os cientistas podem oferecer são intervalos de valores que tal probabilidade pode ocupar, e estes intervalos podem muitas vezes ser bastante imprecisos, com margens de erro elevadas.

Face a esta incerteza, há decisões que têm de ser tomadas. Por exemplo, quanto estamos dispostos a pagar para evitar tais eventos extremos, cuja probabilidade de ocorrerem desconhecemos? A resposta é, claro, ‘Depende!’. Quanto mais avessos a incerteza formos, mais disponíveis estaremos para sacrificar recursos de outros setores para a mitigação dos danos que poderão, eventualmente, ser causados por estes eventos extremos. Mas a determinação da nossa aversão à incerteza é uma matéria moral e política, que, como outras matérias morais e políticas, pode ser informada pela ciência, mas não se esgota aí. E pode variar de sociedade para sociedade, consoante as circunstâncias e preferências. É, portanto, na arena política que estabelecemos o que estamos dispostos a sacrificar para evitar determinado cenário ou para garantir que determinado resultado se realiza. O político que suspende a sua liderança e a entrega à ciência não está, portanto, a ‘cientizar’ a política e a torná-la objetiva, mas somente a empobrecê-la – está, no fundo, a transferir competências políticas aos cientistas, sem justificação para tal. Ora, isto é especialmente grave no contexto de uma democracia deliberativa como a nossa, em que os processos de decisão política devem obedecer a um ideal de escolha coletiva e inclusiva. Noutras palavras, as

considerações morais e políticas que são fundamentais para a escolha de políticas públicas devem seguir de um processo democrático, e não das considerações de peritos em matérias de saúde ou virologia. É importante realçar que não se trata de livrar a democracia de peritos, à la populista, mas de relacionar a democracia e a ciência de forma a que a ciência cumpra o seu papel informador e a democracia cumpra o seu ideal normativo de inclusão nas escolhas políticas. Esperar que, por predefinição, os cientistas façam escolhas políticas por nós – mesmo aquelas que dizem respeito à saúde pública –, mascarando-as de escolhas científicas, é abdicar de um papel político fundamental que cada um de nós desempenha em democracia.

A ciência não é neutra

O argumento que acabei de apresentar não é especialmente inovador. No entanto, uma questão que fica por responder é a de perceber por que razão há sequer a tendência de entregar a tomada de decisões que são fundamentalmente políticas a virologistas e epidemiologistas. O meu diagnóstico predileto é o de que isto acontece porque há a ideia generalizada de que o cientista, nas suas considerações, é um agente imparcial, neutro, que não infeta a investigação científica com valores éticos, políticos e sociais. Deste modo, o produto da sua investigação é incontestável na arena política – mais uma vez, o ideal subjacente é o da cientização da política. Já vimos que, em cenários de incerteza, as considerações morais e políticas são inescapáveis. A ideia do cientista neutro contribui para que nos esqueçamos disso e achemos que, se forem os cientistas a tomar conta do assunto, nos escusamos de fazer considerações morais e políticas difíceis. No entanto, a própria ideia de neutralidade na ciência é já há algumas décadas criticada em filosofia da ciência – mesmo em cenários em que não estão presentes os elevados graus de incerteza associados a uma pandemia.

Uma das críticas – na qual me focarei – relaciona-se com aquilo a que os filósofos chamam ‘risco indutivo’. Muito do trabalho feito em ciência tem a ver com a rejeição ou aceitação de hipóteses que postulam certas regularidades e relações de causa-efeito. Mas estas regularidades são sempre resultado de um raciocínio indutivo, isto é, de um raciocínio cujas premissas indiciam, mas não garantem, a verdade da conclusão. Há, portanto, o risco indutivo de a conclusão a que os cientistas chegam ser falsa. Até na formulação de regularidades que damos como certas, como ‘O sol nasce todos os dias’, este risco está presente, como nos lembra o filósofo do século XVIII David Hume. Afinal, a lógica não impede que hoje tenha sido o último dia em que vimos o sol nascer.

O que é que isto tem a ver com imparcialidade e valores? Se a verdade das conclusões a que os cientistas chegam nas suas investigações nunca é garantida a cem porcento, os cientistas têm de determinar quanto risco indutivo estão dispostos a assumir antes de aceitar ou rejeitar determinada hipótese. Mas o nível de risco assumido varia de hipótese para hipótese, porque a gravidade de aceitar uma hipótese falsa (ou rejeitar uma hipótese verdadeira) varia consoante o contexto da questão que está a ser explorada. Por exemplo, comparemos duas hipóteses independentes uma da outra. Uma é a de que determinada componente de um medicamento X é mortífera. A outra é a de que a componente de um medicamento Y causa dores de cabeça ligeiras. E agora considere quanto risco indutivo deve um cientista estar disposto a assumir antes de rejeitar cada uma das hipóteses – com algum abuso de linguagem, a rejeição das hipóteses equivale a afirmar que o medicamento X não é mortífero e que o medicamento Y não causa dores de cabeça ligeiras.


Presumivelmente, o nível de risco associado à rejeição de cada hipótese vai variar com as consequências éticas de tirar uma conclusão falsa. Neste caso, afirmar erradamente que determinado medicamento não é tóxico teria consequências mais gravosas do que afirmar erradamente que determinado medicamento não causa dores de cabeça ligeiras. E é na apreciação de consequências como estas que o cientista inevitavelmente forma juízos de valor que, de certa maneira, balizam o resultado das suas investigações. Esta é a grande lição de filósofos como Richard Rudner e, mais tarde, Heather Douglas – a de que o cientista, nas suas investigações, não deixa de fazer juízos de valor. A imagem do cientista neutro é, portanto, tanto na prática como na teoria, um ideal errado.

Seguir a ciência em sociedade

Isto não afeta necessariamente a objetividade científica – mas esse é outro tema. No entanto, indica que, nas concussões que tiram, os cientistas recorrem a juízos políticos, éticos e sociais. Em face disto, se é um facto que a ciência incorpora valores na sua atividade, é importante questionar quais os valores que devem ser incorporados. Deverão estes valores ser os dos próprios cientistas; os valores da sociedade em geral; valores particularmente progressistas que mitiguem preconceitos e injustiças socias; ou outros quaisquer? Haverá aqui espaço para discussão, mas, independentemente da solução a que cheguemos, o ponto fundamental é o de que, se é verdade que a ciência não pode livrar-se de considerações éticas, políticas e sociais na sua atividade, então é necessário determinar de onde devem vir essas considerações – e esta avaliação deverá, em si, ser um processo coletivo, democrático.

Assim, torna-se claro por que razão ‘seguir a ciência’ é um mote enganoso. Não porque o conhecimento científico não seja imprescindível, mas porque, por um lado, este não é suficiente para a tomada de decisões políticas e, por outro, porque para a produção de ciência que seja de facto útil, esta tem de ser democraticamente informada. No fundo, em vez de tentarmos cientizar a política, devemos antes democratizar a ciência. Esse é um caminho tortuoso, difícil, que pode facilmente deixar-nos cair na tentação de descredibilizar a ciência, de subjugá-la a ‘wishful thinking’, ou a ilusões fomentadas por interesses políticos, financeiros, ou outros. Para escaparmos a esse risco, é fundamental que não caiamos na ilusão oposta de achar que em ciência não há lugar para a política.

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