Quando escrevi sobre o “inesgotável poder dos concertos ao vivo”, procurei homenagear artistas que se tornaram na minha banda sonora de momentos felizes, intensos, terapêuticos, eufóricos, tristes. A música tem, de facto, um poder inesgotável. E, nesta crónica, gostava de, de um ponto de vista diferente, psicologicamente e fisicamente falando, aprofundar a forma como a música nos toca, dar-vos a conhecer o documentário e a discografia de Courtney Barnett, sobre o processo criativo de quem sente tanto quanto nós.
de Joana Soares
Courtney Barnett no Royal Exhibition Building, Melbourne (Créditos: Sherwin)
Para perceber melhor o efeito da música e dos arrepios na espinha, debrucei-me sobre o artigo do "Abbey Road Institute", que explica como podemos chegar ao clímax musical - uma montanha-russa de emoções, também sentida como “pele de galinha” -, quando ouvimos música que gostamos e antecipamos o que vem a seguir, como uma espécie de mecanismo de recompensa. Isto deve-se, em grande medida, à dopamina, químico responsável pelo prazer que desperta várias reações no corpo e na mente, tais como aceleração do batimento cardíaco, aumento da temperatura corporal e a sensação de arrepio na espinha, especialmente, segundos antes dos momentos especiais de cada canção (refrões ou outras partes que gostemos, por alguma razão).
Escusado será dizer que, à semelhança do chocolate, do jogo, do sexo, das drogas ou do álcool, também esta sensação é viciante ao ponto de darmos por nós a repetir, até à exaustão, músicas ou playlists que nos façam sentir assim e que, de alguma forma, induzam esta sensação de alívio e consequente bem-estar, seja no desporto, na rotina matinal, no banho, no trabalho, em momentos de euforia ou desconsolação. Fazemos tudo por mais uma dose de dopamina.
Se este cenário vos parecer familiar, então é provável que pertençam aos 50% de pessoas que sentem arrepios com música, também associados a diferenças estruturais no cérebro. Ou talvez pertençam ao grupo de pessoas que têm respostas emocionais mais fortes por estarem mais predispostas à experiência ou por terem desenvolvido algum tipo de treino musical - de acordo com um estudo de Matthew Sachs, da University of Southern California.
Em jeito de conclusão, o artigo do Abbey Road Institute acrescenta que, quanto maior o “build up” e a antecipação do clímax, maior será o arrepio, e que, talvez por isso, 90% dos músicos “sofrem” de arrepios musicais - o que nos leva à segunda parte desta crónica: os músicos que também sentem demais, em especial no documentário que vi recentemente.
No final de abril, sentava-me na Culturgest, para assistir a mais uma sessão do festival de cinema independente IndieLisboa - um documentário do IndieMusic, a secção de filmes dedicada à música. Esta escolha não veio ao acaso: dias antes tinha ouvido na rádio a canção “Continental Breakfast”, de Courtney Barnett com Kurt Vile, e os meus ouvidos acordaram para o timbre da artista australiana, baseada em Melbourne. Depois percebi que esse timbre não me era estranho e que afinal já o tinha ouvido anos antes na banda sonora do jogo “Life is Strange”, com a canção que ainda hoje me emociona e arrepia, “Depreston”. E que, no ano passad,o me tinham mostraram uma versão da “Avant Gardener”, que me soou familiar, não pelo timbre, mas pela profundidade e honestidade radical da letra, sempre tão características de Courtney.
“Anonymous Club” (2021) é o documentário que acompanha Courtney Barnett durante 3 anos, na digressão mundial do álbum “Tell Me How You Really Feel” (2018). Este documentário é narrado pela própria, em crónicas filmadas pela lente de 16mm do realizador Danny Cohen, a quem Barnett se dirigia inicialmente em cassetes gravadas como diários que enviava por correio e, posteriormente, em diálogo para a câmara. O nome do filme remete-nos para a canção homónima do seu primeiro álbum, “A Sea of Split Peas” (2013), e a introversão característica de Barnett que, apesar de todos os constrangimentos internos e circunstanciais, se entrega emocionalmente ao processo criativo, à incerteza e à procura pelo sentido da vida, pendendo entre a vulnerabilidade e a frustração de quem não sabe viver sem escrever canções fiéis ao que sente, mesmo quando isso também se revela uma incógnita.
A empatia de Courtney é-nos apresentada no momento em que a artista lança um repto aos fãs, para que lhe contem como se estão a sentir, numa caixa de comentários no seu site (“Tell me how you really feel”). As respostas, lidas por ela, ganham outra dimensão quando percebemos que também as sentiu na pele, como quando partilhou a experiência de ter tido ataques de pânico em palco.
“Talvez seja mais útil simplesmente… falar”, disse enquanto se preparava para ler algumas das respostas dos seus fãs:
“Sinto-me sozinho/a sem saber bem porquê”
“Sinto-me exausto/a mas não quero mostrá-lo”
“Sinto-me um pouco culpado/a, mas generoso/a”
“Sinto-me receoso/a por me apaixonar”
“Sinto-me feliz, mas stressado/a”
“Sinto-me corajoso/a, mas pressionado/a”
“Muitas pessoas diziam sentir-se cansadas, exaustas, sozinhas. Talvez não estejam assim tão sozinhas”, confessou no momento em que a vemos num festival a tocar vigorosamente guitarra, na esperança de unir todas aquelas pessoas através do poder da música.
“Acho que às vezes não faz mal sentirmo-nos tristes e apenas continuarmos a fazer o que estamos a fazer”, ouvimo-la a dizer no trailer e no documentário onde, algures, começa a tocar a canção “Keep On”, que inspirou uma fã a fazer uma caneca com o mesmo nome e a oferecê-la a Courtney num concerto.
O álbum que se seguiu “Things Take Time, Take Time” (2021) segue relativamente esta linha de “Keep On”, num tom completamente diferente dos anteriores, com canções mais leves sobre levar tempo a sentir as coisas. Trata-se de um álbum de viagem, de conciliação e de experimentação, tal como podemos ler na biografia que a descreve fielmente melhor que eu, no Spotify, “Entretanto, Barnett continuará inevitavelmente a fazer o que sabe fazer melhor: traduzir o caos do mundo em brilhante e indelével poesia”.
Posto isto, partilho convosco algumas questões que me surgiram num momento de epifania musical: será a música uma droga ou o berço da catarse? Será esta a alma de que poetas, escritores, músicos, atores e outros artistas, sempre falaram? Ou seremos todos assim? Será um artista menos valorizado por se apresentar genuinamente e despir a pele de "rockeiro", para falar do que sente? Será esta voz anónima, afinal, a voz de uma geração?
Sem pensar muito e numa tentativa de concluir algo que não tem mais por onde escrever se não parar, pôr a música a tocar e render-me ao sentir, recorro a Samuel Becket e apodero-me dos seus versos “Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter tentado. Nunca ter falhado. Não importa. Tentar outra vez. Falhar outra vez. Falhar melhor” para acrescentar: “Tudo desde sempre. Nunca outra coisa. Nunca ter sentido. Nunca ter tentado. Não importa. Sentir outra vez. Sentir sempre. Sentir melhor”.
Que, até ao nosso último suspiro, sejamos sempre fiéis ao que vive cá dentro e que, no meio do caos, encontremos sempre espaço para sentir e gozar dessa inevitabilidade, que é nossa por direito, e que, mesmo em modo anónimo, não pode ser vivida de forma tão pessoal por mais ninguém.
E antes que me esqueça: para celebrar o anonimato e a individualidade, por ocasião do novo álbum, Courtney lançou um novo desafio aos fãs - desta vez, inspirado na canção “Write A List Of Things To Look Forward To”, que, por sinal, é a que me tem deixado com arrepios na espinha. O título fala por si: basta escrevinhar uma lista de coisas ou momentos pelos quais ansiamos, para nos lembrarmos do que ainda estamos cá a fazer, a tinta azul num postal virtual que poderá ser impresso e enviado por correio, tudo é válido para a Courtney Barnett, a voz de uma geração.
Courtney Barnett no Bonaroo Music and Arts Festival, Manchester (Créditos: Christopher Hall)
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