E se um dia voltarmos a cair nas garras duma ditadura? O que foi passado aos mais jovens é que, numa manhã de nevoeiro, lá há de vir um D. Sebastião montado num tanque de guerra para nos libertar. É urgente descartarmo-nos deste neossebastianismo e relembrar que a luta, antes de tudo o resto, começa em cada um de nós
Crónica de Constança Cardoso
Estudante de Antropologia, NOVA-FCSH
Há 46 anos erguia-se um povo que fora injustiçado durante demasiado tempo, dando finalmente os primeiros passos em direcção a uma realidade mais justa. Hoje, nem meio século depois, Portugal deixou recentemente de ser um dos últimos países europeus sem representação parlamentar de extrema direita. O que poderá estar a causar este retrocesso? O que será que deixámos ficar em Abril?
Diz-nos o historiador Enzo Traverso que o século XXI se caracteriza pelo enterro das grandes utopias do século anterior e pelo resgate da memória de tempos passados. Se, por um lado, após a queda do muro de Berlim, houve a necessidade de enterrar o que restava da utopia comunista, por outro, houve também a necessidade de se construir uma nova identidade. Ergueu-se um olhar nostálgico sobre o passado, que no espaço público se traduziu no que o autor chama de “culto da memória”. A memória das vítimas do holocausto passou a eclipsar a memória da resistência antifascista, tornando raras as referências ao socialismo que por lá passou. Já só resta uma estátua de Marx e Engels, sobre a qual alguém grafitou “somos inocentes”. Nas próprias palavras de Traverso, “cada época de restauração visa apagar os vestígios de um passado rebelde; a paisagem urbana altera-se, exibindo os símbolos e os monumentos de uma nova ordem”. É por isso, também, que o filósofo Frederic Jameson nos diz que hoje é mais fácil imaginar o fim do mundo que o fim do capitalismo. Este é um ponto de partida importante para o nascimento da ideologia do “fim da história”, proposta por Francis Fukuyama. Esta ideia defende que a história chegou “ao fim” e que o capitalismo e o neoliberalismo deixaram de ser entendidos como ideologias, para passarem a ser pensados enquanto definição da normalidade social, deslegitimando a luta por uma sociedade diferente.
Este fenómeno espalhou-se praticamente por todo o mundo ocidental, não sendo Portugal uma excepção: perto da minha faculdade, há uma rua com uma placa que diz “Rua Mário Castelhano, sindicalista”. Ora, este homem foi muito mais que um sindicalista, foi alguém que entregou a sua vida à nobre causa da luta antifascista e que foi, por isso, assassinado no Tarrafal em 1940. É importante refletirmos sobre que tipo de memória queremos deixar ao futuro, ao desvalorizar assim a luta deste homem, reduzindo-o ao sindicalismo. É igualmente importante reflectir, por exemplo, sobre o que significa abrir um museu do Estado Novo. Como diria a minha professora e antropóloga Paula Godinho, as democracias não são devedoras dos torcionários, são devedoras de quem lutou por elas. Um museu da resistência (que felizmente existe em Lisboa) é uma forma de construir uma memória colectiva que se foque na luta de um povo pela sua liberdade. Um museu do Estado Novo não só não o faz, como atenua o que foi a violência do regime. Há ainda o caso, absolutamente gritante a meu ver, do ex-PIDE, ex-torturador e, aparentemente, uma das pessoas que atirou sobre a multidão no 25 de abril de 1974, que foi contemplado por Cavaco Silva com uma pensão por "serviços relevantes prestados à pátria", paga com dinheiro público. Coisa a que, ironicamente, Salgueiro Maia nunca teve direito.
Estes são apenas exemplos entre muitos. O que quero com eles dizer é que em Portugal já não se sentem senão ecos enfraquecidos do que foi o sonho da revolução e que a memória da resistência e da luta antifascista tem uma expressão demasiado tímida. Ganha pó em arquivos, sobrevive no meio académico, em certos círculos políticos ou nas próprias pessoas que fizeram a resistência, caso estejam vivas. Talvez se lembrem os seus filhos ou netos, como eu hei de lembrar-me sempre das memórias da prisão do meu pai, em 1973. Porém, as novas gerações já quase não sabem o que foi a resistência.
Foi preciso ter vivido 6 meses em Barcelona, uma cidade que se veste de mensagens de protesto, para me aperceber do quão fraca é a cultura contestatária em Portugal, em comparação com Espanha ou Itália. Durante os seis meses em que lá vivi, as manifestações eram constantes, não sendo de todo restritas à causa independentista, para não falar dos infinitos centros sociais, assembleias de bairro, redes de entreajuda vicinais, cooperativas, espaços ocupados para proveito da comunidade e outras inúmeras iniciativas que fui conhecendo.
Dois dos grandes amigos que lá fiz contaram-me que aos 15 anos ocuparam a sua escola em Nápoles durante três dias, num gesto de protesto para exigir melhores condições no estabelecimento. É algo que dificilmente aconteceria em Portugal. Talvez por ser cá muito fraca a memória da resistência antifascista e da brutalidade do regime, comparativamente a estes lugares. A violência franquista deixou uma marca em Barcelona que ainda hoje se sente. Como resposta, a herança revolucionária desta cidade traduz-se na sua imensa cultura contestatária, que foi passando de geração em geração.
Na verdade, a resistência também passou por cá: durante o Estado Novo, organizaram-se revoltas, greves e manifestações, fizeram-se canções de protesto, para além das das inúmeras tentativas de derrube do regime anteriores ao 25 de Abril. No Couço, a luta anti-regime foi de tal modo que um terço da sua população chegou a estar presa ao mesmo tempo durante a ditadura. No entanto, o que contam os manuais de história do secundário é que na madrugada de 25 de Abril de 1974 o MFA veio salvar Portugal. Não se fala da Catarina Eufémia, da revolta da Marinha Grande ou do avião que Camilo Mortágua desviou para vir a Lisboa largar panfletos anti-regime. Como dizia o major-general Pena Madeira no documentário A voz e os ouvidos do MFA, “Prás pessoas o 25 de abril são os militares na rua, são os carros de combate, são metralhadoras, são as espingardas. As pessoas não se apercebem que antes disso algumas acções foram levadas a efeito.”. Parece-me demasiado perigoso perpetuar esta ideia da revolução dos cravos como uma espécie de milagre das rosas. E se um dia (que poderá não estar longe) voltarmos a cair nas garras duma ditadura? O que foi passado aos mais jovens é que, numa manhã de nevoeiro, lá há de vir um D.Sebastião montado num tanque de guerra para nos libertar. É urgente descartarmo-nos deste "neossebastianismo" e relembrar que a luta, antes de tudo o resto, começa em cada um de nós.
Para além deste revisionismo histórico e da ideologia do fim da história, parece que há um certo pudor, que junta no mesmo saco a resistência antifascista e os crimes cometidos durante os processos revolucionários. Também isto contribui para que a história dessa luta não tenha a expressão que devia no ensino obrigatório. Ora, se as memórias dessa luta não estão inscritas no discurso oficial (que se traduz, entre muitas coisas, no ensino obrigatório), as pessoas não vão saber que ela existiu. Se ninguém nos ensinou que no tempo dos nossos avós uma mulher que exercia um direito tão essencial como o de exigir um aumento do seu salário numa greve foi morta por isso a sangue frio, nunca poderemos compreender o verdadeiro valor das conquistas de Abril.
Marx ensina-nos que a história se repete, primeiro como tragédia e depois como comédia. Hoje, quando por ventura a nossa democracia duramente conquistada poderá estar a ser de novo ameaçada, talvez nos possamos precaver. Há que desprivatizar a história da resistência, para que se possa construir uma memória colectiva que faça justiça a todos aqueles e aquelas que lutaram pela liberdade e que nos dê as ferramentas necessárias para combater as ameaças que podem vir a transformar uma tragédia numa triste comédia.
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