Atrás de grossos muros, gritamos no vazio das redes como nunca nos atreveríamos a falar com alguém. Despejar opiniões num pedaço de sílica e plástico tolda o raciocínio e a autocensura a que nos sujeitamos normalmente, porque envolve as consequências das nossas palavras em plástico de bolhas dando a ilusão de que o seu impacto é tão intangível quanto as “ondas mágicas” que trazem wi-fi aos nossos aparelhos eletrónicos.
Crónica de Maria Teresa Parreira
Licenciada em Engenharia Biomédica, IST
Recentemente, foi concedida à Microsoft uma patente que dará à empresa a possibilidade de criar um “chatbot” de pessoas falecidas, utilizando a sua informação online. Fotografias, vídeos, posts em redes sociais e mensagens servirão de base para esta recriação digital de um familiar, amigo, ou figura famosa, num esforço de mimetizar a sua presença junto de nós. À primeira vista, esta possibilidade poderá parecer uma ideia entusiasmante; para outros, mais cautelosos, poderá soar invasiva. Com uma pequena reflexão, porém, esta proposta da Microsoft empresta-se a uma dose saudável de ceticismo.
A imortalidade sempre emergiu como uma hipótese tentadora. A consciência de que somos finitos no tempo, consequência da nossa racionalidade, inspirou a arte desde que há memória. Atualmente, inspira mecenas a investir milhões de euros em estudos sobre o envelhecimento, a natureza da consciência e a reprodução computorizada do aparelho neuronal humano. A impotência de nos vermos como perecíveis atormenta-nos; porém, dia-a-dia, aproximamo-nos mais do que nunca de uma estratégia para quebrar esta limitação.
A perda dos que nos rodeiam, por outro lado, consegue ferir-nos mais do que a noção da nossa própria mortalidade. São duas ausências: primeiro, repentina, a da pessoa física; depois, gradual, a de imagem que criámos a partir dos momentos partilhados. Desaparece a possibilidade de formar novas memórias e desvanecem as memórias existentes. Nesta perspetiva, muitos de nós abraçariam de imediato a possibilidade de restituir de alguma forma aqueles que perdemos, extinguindo assim uma das maiores angústias da Humanidade. E é exatamente isto que a Microsoft se propõe a implementar, num futuro próximo.
A concretização desta ideia foi explorada num episódio de “Black Mirror”, com um namorado tragicamente perdido cuja aparência e personalidade são reproduzidas por uma empresa. Para quem está familiarizado com a série, o desenlace menos positivo da situação não é surpreendente. Contudo, com a crescente (quase assoberbante) presença virtual que tendemos a criar atualmente, esta possibilidade está longe de ficar confinada a produções de Hollywood.
De facto, a tecnologia que permite a criação de deepfakes (vídeos em que a face ou o corpo de uma pessoa são alterados digitalmente, modificando o seu aspeto, palavras, ou ações) já está acessível para qualquer um de nós com acesso à internet e uma amostra suficientemente numerosa de fotografias. Esta manipulação de conteúdo virtual seria análoga a um dos passos na recriação digital de um indivíduo, captando a sua imagem e expressões de forma a tentar reproduzir fielmente a aparência física daquele que queremos recuperar.
A complexidade aumenta quando pensamos em captar as subtilezas da personalidade de alguém. Somos pessoas diferentes quando estamos com pessoas diferentes; mais do que isso, raras são as vezes em que somos aquilo que mostramos na praça pública das redes sociais. No entanto, o desenvolvimento da persona digital sugerido pela Microsoft basear-se-ia precisamente na nossa presença nesse meio. As mensagens que enviamos, o que tweetamos, os vídeos que filmamos. Ah, mas eis o busílis da questão: seria essa imagem que projetamos no meio virtual reconhecível para os que nos conhecem melhor?
A assustadora dimensão que o bullying e a mesquinhez podem tomar online é um testemunho para a apreensão que esta proposta merece. Atrás de grossos muros, gritamos no vazio das redes como nunca nos atreveríamos a falar com alguém. Despejar opiniões num pedaço de sílica e plástico tolda o raciocínio e a autocensura a que nos sujeitamos normalmente, porque envolve as consequências das nossas palavras em plástico de bolhas dando a ilusão de que o seu impacto é tão intangível quanto as “ondas mágicas” que trazem wi-fi aos nossos aparelhos eletrónicos. Qualquer indivíduo é um intrépido justiceiro na internet; raros são aqueles cuja irreflexão transcende o meio digital.
Se pecamos pelo extremo da impulsividade, a construção da nossa imagem online pode também cair na tendência oposta. O poder para selecionar exatamente o que queremos mostrar aos outros permite criar uma identidade que pouco ou nada tem de genuíno, ou verdadeiro. De repente, eis-nos capazes de aplicar filtros cuidadosos entre o que somos e o que escolhemos partilhar que somos, uma curadoria, mesmo que inconsciente, da nossa identidade. Um exemplo plenamente óbvio deste comportamento pode ser encontrado em qualquer aplicação de namoro online: escolhem-se as melhores fotografias, hesita-se sobre a forma como responder a mensagens, tudo num esforço de refletir as partes mais interessantes - a nata - de quem se é.
Em ambos os casos, como em qualquer interação digital, a autenticidade é incrivelmente rara, mesmo se for o que procuramos refletir. Assim, a construção de réplicas humanas com base na nossa presença virtual pede uma dose considerável de sensatez. Talvez encontre sucesso para os fãs de alguém famoso, cuja imagem integral não se sustenta em interações físicas; mas não trará às mães os seus filhos de volta. Somos incrivelmente complexos, e ainda não estamos evolutivamente adaptados a transmiti-lo no meio virtual. Piscares efémeros de pirilampos, identidades sem continuidade.
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