Nas palavras do (à hora a que escrevo) ministro Cabrita, a descentralização é como um bolo, "não é possível ter opinião sem o provar”. Eu, alfacinha, nascido e criado, sei que poderei vir a comer mais fatias do que outros
de Afonso Madeira Alves
Quando a Ministra da Coesão Territorial avisa que importa “preservar e contar as histórias das gentes da serra”, poderemos ser levados a crer que a classe governativa decidiu confrontar o desprezo oriundo de um imaginário cosmopolita que tende a alienar parte da população do denominado país real. Contudo, se tal afirmação for proferida ao volante de uma pickup todo-o-terreno que transporta neve da Serra da Estrela até Lisboa, torna-se complicado encontrar nessas palavras algum significado que vislumbre uma melhor coesão, surgindo a suspeita de que a relação entre o povo súbdito e as figuras centrais permanecerá desnivelada. A neve ofertada à capital do reino, outrora uma tradição cujo deleite se restringia a um exclusivo da corte filipina, serve hoje um pretexto idêntico: indicar à nação que o seu fado passa por um centro de decisão que, se bem alimentado, apadrinhará todas as necessidades locais e regionais.
Descontando o episódio de silly season da ministra, cuja intenção cândida se dignificou numa promoção da nossa História e da Região das Beiras, não deixa de ser preocupante o quão consensual é o facto de vivermos num país profundamente centralizado.
A imagem da “terrinha”, por vezes tão romântica quanto arrogante, constitui traço de um território que se associa de forma arcaica, fazendo jus à idade das suas próprias fronteiras. Das assimétricas nortadas que vão maçando o agradável clima de Lisboa, ao velho sul que deprime por (não) ver os seus filhos fazerem-se à vida entre os melhores, Portugal tem pautado a sua experiência democrática por um lamento colectivo intemporal: como é que terra tão pequena sofre de um centralismo tão forte?
O histórico das tentativas de descentralização do poder em Portugal é-lhe bastante desfavorável: se no Estado Novo a democracia local era uma miragem, também os regimes anteriores tiveram apenas breves momentos de apoio à descentralização (nomeadamente, durante a vigência dos códigos administrativos de Passos Manuel, em 1836, e de Rodrigues Sampaio, em 1878, que determinaram freguesias, municípios e distritos, munidos de órgãos eleitos).
Já em Democracia, a constituição de 1976 puxa a corda para a regionalização do território, num processo político-administrativo de criação de regiões, sempre com órgãos eleitos pelos cidadãos, que suceda à lógica distrital. No entanto, entre a barafunda daqueles anos loucos, a concretização desta reforma foi sendo sucessivamente adiada, sofrendo dois rudes golpes que arrumaram o assunto no fundo da gaveta até ao corrente século: a queda do governo de Pinto Balsemão em 1982 (até então, o único governo que tentara instituir a regionalização do continente) e, de seguida, o chumbo contundente via referendo popular em 1998 (mais de 60% não concordou com a proposta de criação de 8 regiões administrativas). Assim, por razões que todo o político actual diz condenar — sendo que muitos são os mesmos actores desde o primeiro episódio — este processo tem alternado entre a letargia inerente a um problema complexo e a priorização apressada e, consequentemente, mal-executada.
Aquilo que temos hoje é uma descentralização à imagem de Alberto Caeiro: não é uma filosofia, mas sim um conjunto de sentidos; quem fala nela, não é porque saiba o que ela é. Descentralização tem sílabas suficientes para forrar um discurso tecido no vácuo. Num malabarismo verbal, descentralizar tornou-se num verbo fofinho e inócuo, perfeito para quem nada quer dizer. De forma trágica, o termo suicidou-se com a política.
Filipe Teles, professor da Universidade de Aveiro e autor do pedagógico ensaio “Descentralização e Poder Local em Portugal”, apelida o actual modelo de governação de “incentivo à liberdade incapaz”: o poder local pode decidir formalmente, mas vê-se com poucos meios para sustentar essa autonomia face ao poder central. Por outras palavras, o autarca vê o governo transferir-lhe cada vez mais competências em certas áreas — educação, saúde, cultura, etc. — ao mesmo tempo que se apercebe que o orçamento municipal não cobre todos os novos gastos, correndo o risco de prestar um serviço aos cidadãos de forma menos eficiente. É com base neste raciocínio que o processo de descentralização tem titubeado entre avanços e recuos, desde que os constituintes de 1976 aliaram o desenho de um nível de poder intermédio entre o Estado central e as autarquias locais ao princípio inscrito da subsidiariedade — numa lógica organizacional “de baixo para cima”, os problemas das populações seriam resolvidos, tanto quanto possível, no plano local mais próximo.
O atraso desta reforma do Estado tem criado um círculo vicioso que nos suga o desenvolvimento: quem constata que o verdadeiro poder está acumulado no centro, quererá estar o mais próximo possível do mesmo, tendo demasiado a perder caso fique de fora; por outro lado, quanto maior a capacidade do governo central, mais díspar se tornará de um poder local que sobra para uns quantos gemebundos que o vão gerindo como podem, trocando esmolas por vassalagem ad aeternum. Deste modo, não é de estranhar que nas campanhas autárquicas, os candidatos mostrem o despudor de promover a sua relação estreita com o poder central, perfilando-se como nomes na guest list de um evento cujas receitas revertem em parte para os seus pobres eleitores. Consequentemente, também se torna óbvio que há debates autárquicos (e candidatos) que merecem mais tempo de antena do que os outros: para um território desigual, normas democráticas desiguais.
De igual modo, enquanto a descentralização se cingir a algumas competências que o governo central decide impingir às autarquias locais, estas últimas irão continuar a operar como o seu braço armado, de pouco valendo caso fiquemos somente pela fase da “desconcentração centralizada”. Num presente em que a recuperação económica se faz com pacotes financeiros europeus, importa notar que este defeito de governação está bem patente quando cruzamos os mais recentes dados de despesa pública efectuada a nível local (5,6% do PIB em 2019, bem abaixo da média europeia) e o investimento público (52% no nível local, sendo que 84,2% desse investimento foi financiado por fundos de coesão de 2015 a 2017). Assim, retirando uma das conclusões mais prementes do ensaio do Professor Filipe Teles, “com fundos comunitários, os municípios portugueses são meros implementadores; sem fundos, são insignificantes”.
Estou em crer que este é um tema que voltará à baila nos próximos tempos. Nas palavras do (à hora a que escrevo) ministro Eduardo Cabrita, “a descentralização é como um bolo, não é possível ter opinião sem o provar”. Eu, alfacinha, nascido e criado, sei que poderei vir a comer mais fatias do que outros; e também sei que, caso enfartado, terei ao meu dispor um bom copo de vinho branco regional, distintamente conservado entre o meu gelo da Serra da Estrela.
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