A peça de teatro Fake estreou em 2020 e depois de um período em digressão, que passou pela sala do Teatro Nacional D.Maria II, migrou, por força das restrições sanitárias, para as salas online. Estivemos à conversa esta semana, por videochamada, com a dramaturga Inês Barahona e o dramaturgo e encenador Miguel Fragata, fundadores da estrutura artística que dá corpo a Fake, a Formiga Atómica. A conversa viajou pelo início da carreira dos dois artistas, pelos projectos teatrais que construíram em conjunto e pelo processo de construção do seu espectáculo mais recente. O Jornal Crónico agradece a participação da Inês e do Miguel nesta entrevista e informa os leitores que o Fake estará disponível de 26 de fevereiro a 6 de março na sala online do Teatro Nacional S. João, no Porto.
Entrevista e texto de Mafalda Guedes Vaz e António Vaz Pato
Mafalda Guedes Vaz (MGV): Miguel, sendo ator, quando sentiu necessidade de passar para a encenação?
Miguel Fragata (MF): Foi um salto natural, sempre foi uma dimensão do espetáculo que me interessou. Quando comecei a minha formação em teatro, apesar de estar num curso muito vocacionado para a formação de atores, havia sempre um cruzamento grande entre áreas, tanto que, logo na primeira semana de trabalho, aquilo que era proposto aos alunos do primeiro ano era que rodassem pelas várias áreas dos vários cursos.
Conheci a Inês numa fase em que comecei a trabalhar no Centro Cultural de Belém (CCB), que na altura tinha o Centro de Pedagogia e Animação (CPA), que fazia um trabalho de mediação entre as artes e a educação. A Inês trabalhava com a pessoa que fazia a direção deste projeto, a Madalena Victorino, e eu fui para lá a convite da Madalena para trabalhar num espetáculo. Estabeleceu-se nessa altura uma relação longa de trabalho onde havia muito espaço para a criação, para criar espetáculos e pensá-los de raiz, ter um olhar e uma palavra a dizer sobre a criação do objeto artístico. Criámos oficinas e ateliês que faziam essa mediação entre as artes e a educação. A primeira encenação oficial, concreta e absoluta que fiz foi em parceria com a Inês. A Inês dedicada à escrita e eu à encenação, no nosso primeiro espetáculo, A Caminhada dos Elefantes, que nasceu antes da Formiga Atómica (FA). A FA nasce na sequência desse espetáculo como uma necessidade prática de ter uma companhia, uma associação que pudesse representar esse espetáculo que começou a circular bastante.
MGV: Nessa linha, perguntava à Inês como foi passar da filosofia para o teatro (sabendo que se complementam bastante bem). Em que medida acha que este background em filosofia ajuda na criação dos espetáculos?
Inês Barahona (IB): Quando terminei a licenciatura em Filosofia decidi seguir o mestrado de Estética e Filosofia da Arte, porque me interessavam as zonas de contacto com a literatura, com o cinema, com a pintura e com artes visuais. Na altura da tese, comecei à procura de trabalho. Havia uma pessoa que conhecia a Madalena Victorino com quem tinha tido uma conversa. A Madalena tinha ficado sem uma pessoa na estrutura de produção e então disse “Ela que venha cá falar comigo” e eu fui. Eu não era propriamente grande frequentadora de teatro, ainda hoje acho que estou a construir um património de conhecimento daquilo que é o teatro. A Madalena falou-me do seu trabalho, explicou-me o que é que fazia e disse-me uma coisa que nunca mais me saiu da cabeça “O meu trabalho assenta na minha convicção de que as artes têm um poder transformador.”. E eu pensei “Quem é que diz uma coisa destas? Já ninguém diz uma verdade colossal deste tamanho.”. Ela perguntou-me se eu sabia mandar faxes e eu respondi que sim. A partir daí começou um trabalho muito intenso, que, para mim, foi de facto uma escola, uma aprendizagem em que eu constatei isso que ela dizia. O meu trabalho no teatro começou aí, foi completamente acidental. Aos poucos, fui caminhando para um trabalho cada vez mais relacionado com a área da escrita e da dramaturgia. Comecei a fazer adaptações de alguns textos para pequenos espetáculos, pequenos formatos que eram apresentados e subitamente esse projeto do CCB desapareceu. Entretanto já tinha conhecido o Miguel e foi nessa altura que idealizámos este espetáculo [A Caminhada dos Elefantes].
António Vaz Pato (AVP): Quando e porque é que sentiram necessidade de criar a Formiga Atómica e como funciona a dinâmica de trabalho entre os dois?
MF: Na verdade, a Formiga surge desta necessidade completamente mundana de ter uma estrutura que pudesse representar este espetáculo A Caminhada dos Elefantes, mas é evidente que a Formiga surge, quando surge este espetáculo e é sobretudo um momento inaugural na forma como nós nos organizamos, como trabalhamos em conjunto. A Caminhada dos Elefantes tinha como premissa ser um projeto sobre a morte, ser uma reflexão sobre a morte para todos pensarem verdadeiramente num espaço que pudesse ser partilhado entre crianças a partir dos 6 anos. Queríamos que funcionasse para todos e que pudesse mesmo ser um momento de encontro entre crianças e adultos. Isto porque sentíamos que a morte era um assunto tabu, de difícil diálogo. Pensámos que a coisa mais inteligente a fazer era escutar verdadeiramente as crianças, perceber o que é que elas tinham a dizer sobre a questão e ao mesmo tempo ouvir os adultos. Trabalhámos com uma psicóloga, porque estávamos com bastante receio sobre como abordar a questão. Fomos acompanhando alguns adultos a quem pedimos que respondessem a uma simples pergunta: "Como explicar a morte a uma criança de 8 anos?”. Foi a partir deste material que o espetáculo surgiu.
Acima de tudo interessa-nos fazer espetáculos que sejam urgentes, importantes no sentido dessa urgência de comunicar, de pensar sobre matérias do presente, da atualidade, que sejam mesmo matérias que estejam na ordem do dia ou que sejam tão transversais como a questão da morte, por exemplo. São questões que nos atravessam a todos e para as quais todos sentimos uma necessidade premente de resposta, de pensamento e de reflexão.
AVP: Essa relação acaba por marcar muito o vosso trabalho na Formiga Atómica. A interação com o público mais jovem é muito importante nos vossos trabalhos. Por exemplo, têm o The Wall, que é um espetáculo construído à volta desse confronto criança-adulto, e o Montanha-Russa, que é mais focado nos adolescentes. Acho que essa interação acaba por ser certamente bastante desafiante para vocês. Como olham para essa interação?
IB: Normalmente dizemos que partimos para os processos como se fôssemos completamente ignorantes em relação a um determinado tema. Tentamos sempre ir sem preconceitos e depois vamos à escuta. É muito engraçado porque, às vezes, confirmam-se algumas ideias que nós carregamos, outras vezes elas ficam completamente postas de pernas para o ar e, outras vezes, não é nem uma coisa nem outra, porque a realidade é muito complexa e diversa. Por exemplo, no trabalho que fizemos para a construção do Montanha Russa, que era uma reflexão sobre a adolescência, foi muito interessante porque nos obrigou a revisitar de alguma forma esse tempo da adolescência. Nós os dois tivemos relações muito diferentes com esse tempo de adolescente. Eu odiei ser adolescente, o Miguel adorou ser adolescente. Foi, no fundo, uma revisitação da nossa própria vida num tempo em que nós ainda não nos conhecíamos. Foi uma viagem muito profunda a partir das palavras que não eram nossas, a partir de sensações e relatos que não eram nossos. Essa possibilidade de sermos transportado para outras visões, olhares, emoções, sensações é muito o que vem deste trabalho exploratório a que chamamos “pesquisa”, mas que é aquilo que acaba por enriquecer e nutrir o nosso próprio trabalho. A riqueza do real, para usar agora as palavras do Fake, “Basta estar atento ao real e à riqueza do real para conseguir imaginar muita coisa”, é o nosso princípio orientador quando fazemos esse trabalho de pesquisa.
MGV: O Fake é o vosso trabalho mais recente a ser apresentado em palco. Podemos dizer que de alguma forma se relaciona, por exemplo, no processo de investigação ou de criação com todos os outros espetáculos anteriores?
MF: Na verdade, há uma série de espetáculos que foram nascendo na Formiga que foram sendo filhos uns dos outros. O The Wall só poderia ter nascido depois de A Caminhada dos Elefantes, porque nós abordámos a questão da morte e tendo feito esta pesquisa intensa com estes dois públicos muito distintos, o das crianças e o dos adultos, nós percebemos que a morte era só uma das questões fracturantes entre estes dois universos. O The Wall colocou-nos o problema da ausência dos adolescentes, então nessa altura decidimos que o nosso espetáculo seguinte seria um pensamento sobre a adolescência, e é assim que nasce a Montanha-Russa. O Fake, já nasce de um outro pressuposto, nasce de um desejo de fazermos um espetáculo que não tivesse um público-alvo. No caso do Fake era esta ideia de ser um espetáculo sem público-alvo, onde pudéssemos trabalhar sobre um tema atual e estruturante - o caso da desinformação e das tensões entre a verdade e a mentira. Queríamos perceber como poderíamos abordar a questão da pesquisa e então decidimos concentrar tudo numa semana, a “Fake Week”. Foi curta, mas foi muito intensa, onde tivemos contribuições do público, de pensadores e de pessoas que estão ligadas ao jornalismo, à política e à filosofia, que pensaram connosco a questão da verdade e da mentira.
MGV: Pensando ainda na construção do Fake, como foi formado o elenco? Já tinham actores em mente quando estavam a escrever o texto ou essa escolha veio posteriormente?
IB: Nós trabalhamos os dois sempre muito conectados. Normalmente quando eu começo a escrever, o Miguel já me lançou uma ideia qualquer de encenação. Eu diria que a primeira ideia do elenco é uma ideia de encenação que está sempre lá desde o início. Neste caso, o Miguel tinha dito desde o princípio que a proposta partia do diálogo entre o teatro e o cinema. A escrita foi feita em função daquilo que a câmara podia fazer em cena à representação de um actor. Por exemplo, se iria expor a verdade ou se iria expor um lado mentiroso da representação. A partir dessa ideia lançou-se este trabalho, com muita discussão e muitas versões. Este espectáculo teve 20 versões, não é Miguel?
MF: Não, não, 20 e muitas. 27 acho eu.
IB: É verdade. Havia também desde logo a presença que nós queríamos ter de duas pessoas, as duas actrizes que estão em palco, a Anabela Almeida e a Carla Galvão, e depois ficou claro…
MF: Na verdade, Inês, já havia todo o elenco quando começámos.
IB: Sim, foi progressivo. foi a Anabela, a Carla, depois o João Monteiro e por fim o Duarte (Guimarães). Fomos compondo para chegar àquele resultado equilibrado.
MF: Normalmente é isso que acontece, ou seja, primeiro há o conceito do próprio espectáculo que lança o tipo de peça. No Fake era muito evidente que, havendo esta ideia de trabalhar o teatro e o cinema em paralelo, tínhamos de ir buscar actores que tivessem uma experiência dupla, actores que tivessem uma experiência em cinema ou em teatro. Inicialmente tínhamos esta ideia de ter estas quatro pessoas mais uma quinta pessoa, que seria um elemento fixo, uma actriz vinda quase exclusivamente do mundo do cinema. Foi feito esse convite mas não se concretizou. E então percebemos que poderia ser interessante pensar que essa pessoa, que no fundo traria o universo do cinema às costas, pudesse ser várias pessoas que se iam revezando. Foi desta alternativa, fruto da situação e fruto do que isso poderia significar no próprio espectáculo, que surgiu a ideia de ter várias actrizes. Simbolicamente, faria sentido que fossem 8, como referência ao cinema, ao François Ozon e às 8 mulheres [referência ao filme 8 Femmes de François Ozon]. Portanto, compôs-se este elenco, do qual 3 mulheres ficaram com a missão de aparecer no espectáculo.
IB: É isso.
MF: Nós pensamos o texto com os actores em mente, por isso é que é muito importante termos uma relação sólida com as pessoas, conhecer bem o trabalho delas. Isso dá-nos um desejo de criar palavras para pôr na boca destes actores, sabendo que vão funcionar de uma maneira particular.
IB: Essa é a lógica do nosso trabalho. Nós trabalhamos muito nessa fronteira fininha entre a verdade e a mentira. E para que isso funcione, há um grau de plausibilidade que as coisas têm de ter. Sem conhecer em concreto quem são aqueles actores, é difícil escrever porque nós podemos não estar a acertar no alvo. Quando eles começam a aprender o texto e chegam ao ensaio, transformam o que escrevemos numa frase diferente, mas que tem tudo a ver com a sua construção, com o seu ritmo de discurso. Nós alteramos o texto muitas vezes para ficar mais próximo da autenticidade. Essa ideia, que aparece muito nos nossos espectáculos muitas vezes com humor, tem também a nível da construção do texto este aspecto de colagem àquilo que são os actores, mais do que criar a personagem que diria as coisas de uma determinada maneira.
AVP: Numa entrevista em 2018, Miguel, tu disseste: "O papel do teatro é fazer refletir, fazer pensar, é fazer olhar para um tema de uma perspetiva abrindo essa perspetiva. Não é dar receitas, mas permitir pensar sobre isso." Em Fake que reflexões procuraram suscitar no público para além da problemática central, o tal conflito entre a verdade e a mentira?
MF: O dispositivo do espectáculo propõe logo uma provocação. Vocês assistiram à peça filmada…
AVP: Sim, a experiência certamente acaba por ser muito diferente para quem vê em streaming…
MF: É verdade. Em palco, aquilo que o espectáculo propõe ao espectador o tempo inteiro é uma escolha entre acompanhar o espectáculo através da presença física dos actores, ou seja, ver aquilo que está a ser “fabricado” em palco, ou então deixar-se conduzir pela força do ecrã e pela força das câmaras que estão a captar tudo aquilo que os actores fazem. E essa é logo uma primeira reflexão: A forma como nos deixamos manipular e a forma como caímos na esparrela da montagem, da crença perante as imagens com as quais somos constantemente bombardeados em inúmeros suportes. É muito interessante porque nos vemos rapidamente absorvidos pelo ecrã. Por mais que desejemos ir acompanhando aquilo que os actores fazem cá em baixo, a imagem tem uma força muito mais atractiva. Às tantas acabamos o espectáculo com a sensação de que perdemos metade da acção porque nos deixámos conduzir pela atração da tela. Isso dá muito que pensar.
AVP: No processo de pesquisa houve algo que vos surpreendesse realmente do mundo das “fake news" e que gostassem de partilhar?
MF: Sim. Inês queres partilhar?
IB: Quando nós percebemos o fenómeno que tinha acontecido na eleição do Trump com a profusão de fake news que vinham de Vehls, uma cidade que não tem interesse absolutamente nenhum no… na… Miguel ajuda-me.
MF: Na Macedónia.
IB: Sim, eu troco sempre o país (risos). Uma cidade na Macedónia com imensos problemas sociais, onde havia um conjunto de pessoas que já tinham feito algumas experiências utilizando o Google Ads no domínio da saúde e bem-estar vendendo produtos que eram basicamente banha da cobra…
AVP: Vocês trouxeram esse elemento para a peça [com nomes de marcas falsas nos produtos utilizados pelas personagens].
IB: Eles perceberam mais tarde que, com a política, conseguiam fazer muito mais dinheiro. E não era propriamente por estarem de acordo com Trump que eles invadiram os meios americanos com informações falsas contra a Hillary (Clinton). Foi porque isso lhes dava mais dinheiro, ou seja, os eleitores que votaram em Trump eram mais propensos a partilhar notícias falsas do que os eleitores da Hillary. E essa inocência numa escolha política que é motivada única e exclusivamente pelo dinheiro foi uma coisa muito chocante de descobrir. No fundo, a inocência com o que se conjugaram um conjunto de condições para proporcionar a eleição de um tipo como o Trump nos EUA é muito perturbadora. Esse facto mexeu muito connosco e percebemos como isto pode ser casual, como pode acontecer algo que é só um “alinhamento de planetas”, como diriam as pessoas da astrologia (risos). Um alinhamento de condições que parecem não fazer sentido nenhum e que de repente…
MF: Sim, isto altera o curso do mundo, essa é a dimensão perturbadora. Nós fizemos um conjunto de ateliês de desconstrução de fake news junto de jovens que estavam a acabar o ensino secundário ou a iniciar o ensino superior. Estas sessões eram orientadas por um jornalista que trabalhou muito connosco, o Frederico Baptista. Aí percebemos, não com muita surpresa, que o desconhecimento face à política por parte dessa geração é predominante. Há um desinteresse em relação a esse mundo e, ao mesmo tempo, a mesma inocência que encontrámos nos jovens em Vehls. Vemos essa inocência nesta geração porque eles acabam por ter uma convivência próxima com as tecnologias, como se elas fossem a resposta credível para tudo. A fonte de informação, para eles, é o Google. Há toda uma dimensão para a qual temos de estar muito atentos que tem a ver com a manipulação dos dados pelo algoritmo que condicionam a nossa percepção do mundo através de um aparelho electrónico. Outra descoberta interessante surgiu no trabalho que fizemos já com algumas das actrizes que depois vieram a incorporar o espectáculo, através de um convite que lançámos a um, a um… Inês ajuda-me.
IB: Um trainer em linguagem corporal, microexpressão e detecção de mentira (risos).
MF: Uma pessoa que está ligada à detecção de mentiras em contexto de justiça…
IB: Investigações policiais, por exemplo.
MF: Sim. Foi um cruzamento interessante porque convidámo-lo a avaliar a veracidade na representação de várias actrizes num determinado papel. Foi muito interessante perceber toda esta análise da linguagem e da expressão faciais…
IB: E corporais também.
MF: Exacto. Esta linguagem diz uma série de coisas não só sobre a forma como nos comportamos e como nos relacionamos uns com os outros, mas também sobre os preconceitos que nós carregamos e aos quais não prestamos a menor atenção. A linguagem corporal dita muitas vezes a primeira impressão que temos de alguém e como isso condiciona logo à partida a maneira como nós olhamos para o outro, resultando numa leitura muito limitada de determinada pessoa.
AVP: E esse modo de linguagem, aliás, é mais primitivo do que a própria fala e talvez seja por isso que temos uma reação mais visceral e automática à mesma.
IB: Sem dúvida. Há traços fisionómicos que indicam a culpa ou a inocência. Por exemplo, eu não sei se vocês se lembram de um tipo que no Norte matou uma série de pessoas e que andava a monte. Como é que ele se chamava, Miguel?
MF: Não me lembro do nome também.
IB: Bom, não importa. Este especialista em detecção de mentiras, que se chama Rui Mergulhão Mendes, dizia que uma das razões que levou tanta gente a defender a inocência deste homem tem que ver com uma característica fisionómica muito particular chamada “baby-face” (risos). Ele tinha uma cara muito redondinha e umas bochechas muito coradinhas e redondas. Normalmente, esse género de cara está no nosso inconsciente associado à infância, à pureza, à inocência. E, portanto, quando alguém com esse tipo de fisionomia faz o discurso do desgraçadinho inocente, nós caímos mais facilmente do que se fosse com alguém com uma fisionomia com uma estrutura óssea mais larga e pronunciada e traços menos suaves. De facto, parece que há um catálogo ancestral na nossa cabeça que nos faz encaixar as pessoas nessas categorias. E quando o Miguel lançou a ideia de uma audição para um papel de uma pessoa de quem se fala o tempo todo mas que nós ainda não vimos, pensámos que seria interessante deixar o espectador formar na sua cabeça a imagem mental de quem seria esta Norma B., e de, ao olhar para aquelas 8 actrizes todas muito diferentes, fazer esse “match”: Quem, no espírito de cada um, era a actriz perfeita para aquele papel?
MGV: É um exercício muito interessante, de facto. Ainda sobre esta pesquisa das ‘fake news’, sei que criaram um site com notícias falsas, o “Fake Weekly” (FW). De que forma a criação do site ajudou na construção do espectáculo?
IB: Correm em pistas paralelas, digamos. Na verdade, o trabalho de criação do jornal com o grupo de pessoas que esteve na “Fake Week” foi muito interessante para perceber como se cria a mentira. Quando vemos fake news, achamos que é facílimo inventar aquilo, mas não é assim tão fácil. Como resultado, corre numa pista paralela ao espectáculo mas como reflexão foi muito importante. E como estamos a viver esta época tão esquisita, com tanta profusão de fake news, começámos a sentir a necessidade de levar aquilo ao extremo da ironia e do humor porque de outra mentira corríamos o risco de sermos levados a sério. Acabámos por empurrar o FW para uma zona mais humorística que, por força de todos os cancelamentos e reagendamentos, não ganhou o fulgor que nós queríamos que tivesse ganho ao longo deste período em que estamos a apresentar o Fake. E começou a ficar estranhamente parecido com a realidade. Levar com uma pandemia em cima de um jornal fictício faz com que esse jornal fique esquisito.
AVP: Pensando agora nas perspectivas para o futuro, do teatro e do vosso trabalho em geral, eu trouxe uma citação de um livro chamado “O Espaço Vazio” do Peter Brook que diz assim: ”O dia em que as pessoas forem ao teatro para cumprir um dever será um triste dia. Uma vez dentro do teatro, o público não se pode açoitar para ser “melhor” do que era quando ali entrou. Num certo sentido, não há mesmo nada que um espectador possa fazer: e ao mesmo tempo, há aqui uma contradição, pois tudo depende dele.” Há uma interação tácita, um diálogo silencioso entre o público e os actores que, segundo Brook, parece ser determinante para o trabalho de quem está no palco. Como será esta experiência para os profissionais do teatro, principalmente para os actores, quando puderem reabrir as portas ao público, de ver um público novamente mascarado?
MF: O Peter Brook fala de uma coisa muito bonita que acontece no teatro que é o facto de a comunicação acontecer e não ser preciso nada: basta que um actor atravesse o espaço vazio e que alguém esteja a assistir para que o teatro possa acontecer. E, de repente, sermos confrontados com esta realidade, em que o teatro tem de se repensar e tem de se apresentar em contexto online, é óbvio que essa não é nem nunca poderá ser uma experiência próxima da verdadeira experiência teatral, porque falta esse elemento essencial. Talvez o Fake de todos os nossos projectos, tenha uma vantagem em ser apresentado online. Como é um espectáculo com estas duas dimensões, do vídeo e do palco, pelo menos umas das dimensões está acautelada quando se apresenta online. Muitas vezes quando nós apresentamos espectáculos online a sensação que temos é mesmo de uma experiência falhada porque são objectos que não são pensados para esse fim e por mais que resulte como passagem de informação para o público, não há essa experiência vívida. E, como há pouco a Inês estava a dizer, o nosso trabalho assenta muito nessa ideia de desfazer as convenções e de as questionar. O objectivo é mesmo desmontar a convenção da ficção em cena e relembrar que estamos todos aqui neste momento [a assistir a uma peça de teatro].
Agora sobre actuar perante uma plateia mascarada, quando começámos a fazer espectáculos depois do primeiro confinamento a sensação foi muito estranha porque parecia haver uma barreira àquela que é a barreira natural, a tal “quarta parede”. Temos uma nova barreira neste momento que são as máscaras e o distanciamento. Há um bloqueio na linha de comunicação de que o Peter Brook falava, a tal comunicação entre o actor e o espectador. Fica muito difícil para quem está em palco ler as expressões e as reações do público. É um exercício ainda mais exigente, mas perfeitamente possível. Prefiro mil vezes fazer espectáculos para plateias mascaradas do que não fazer de todo.
MGV: Neste futuro, que temas é que inquietam e são urgentes de serem falados, enquanto criadores? Estão a pensar abordar esses temas num futuro próximo?
IB: Há um projeto sobre educação que vai começar a avançar rapidamente, que foi adiado por força da pandemia no ano passado, que se chama Má Educação. Nós estamos muito em contacto com a realidade da escola, não só enquanto criadores, mas também enquanto pais. Temos também muito contacto com o público escolar e vamos percebendo as diferenças desse público na relação com as artes, com o pensamento, com o diálogo, com o trabalho sobre a sensibilidade, sobre o sentido de comunidade, e portanto decidimos que queríamos fazer um espetáculo sobre a questão da educação. Vamos avançar este ano, mas em formato misto entre o presencial e o online. Vamos trabalhar, por um lado, com adultos ligados ao mundo da educação não só professores mas também, por exemplo, os motoristas dos autocarros escolares, as contínuas (que normalmente são mulheres), cozinheiros, os funcionários do bar, as pessoas da secretaria… Todas as pessoas que de alguma maneira estão ligadas a esta questão da educação e da formação ao longo da vida e que habitualmente não dialogam umas com as outras, que têm na mão a possibilidade de fazer diferente. E isso ficou muito patente na forma como responderam à pandemia, sem grandes instruções do Ministério. Não houve diretivas para ninguém e, de repente, todos eles tinham inventado novas formas de testar, de fazer, de se relacionar com os seus alunos, com as matérias, com a sua necessidade de cumprir ou não o programa, de ensinar ou não… E portanto queríamos muito trabalhar com eles sobre uma ideia utópica de educação, sem qualquer tipo de espartilho. Como é que nós, com uma arquitetura de escola que vem do século XIX, com conteúdos que vêm sendo acumulados de um passado que é cada vez mais extenso e laborioso, temos a ousadia de dizer que estamos a preparar alunos para o futuro? Este é um dos projetos e vai estrear em março de 2022. E depois há um outro…
MF: Há um outro projeto ao qual chamámos provisoriamente O Estado do Mundo. Serão dois espetáculos, brevemente será o primeiro espetáculo para público jovem, a partir dos 6 anos, em que queremos abordar a questão das alterações climáticas. Queremos ouvir os cientistas, os filósofos, os ativistas que estão a pensar sobre a questão, e construir um espetáculo que responda também ao desafio da sustentabilidade e que deixe o mínimo possível de pegada ecológica – o que é uma coisa difícil quando se fala de espetáculos de teatro. O objectivo é gerar um pensamento que ponha o dedo na ferida e que nos obrigue também a pensar sobre a necessidade rápida de agir em relação a isto.
Também haverá um outro projeto maior, para público adulto, que será uma espécie de “irmão mais velho” deste primeiro projeto e que deverá, mais uma vez, dedicar-se a essa questão e também à questão política, geográfica e social do estado do mundo. Antes disso tudo, há outro projeto encomendado pelo Teatro Nacional, para trabalhar a partir de um texto de Gil Vicente, Pranto de Maria Parda, escrito em 1521. É muito interessante, porque é um texto que convoca uma série de ideias que estão hoje muito presentes, nomeadamente a relação com a própria cidade. É um monólogo de uma indigente, uma mulher que anda pelas ruas de Lisboa a pedir vinho, fiado, e se depara com a cidade completamente deserta porque no ano anterior tinha havido uma seca gigantesca, morria-se nas ruas à fome, havia a peste. E esta personagem é uma espécie de figura sacrificial que é preciso deixar morrer para que se possa recuperar do ano mau. E, de repente, há esta coincidência. Estamos em 2021, temos uma pandemia, uma crise a estalar, a cidade está irreconhecível e, ao mesmo tempo, há uma questão muito importante que o texto convoca que tem a ver com o racismo, porque esta personagem, durante muitos séculos, foi vista como uma personagem negra, como se Gil Vicente tivesse escrito para uma mulher negra interpretar este papel - não há evidências nenhumas de que assim seja (pelo contrário), mas a tradição quis que assim fosse. E isso também nos faz pensar muito sobre aquilo que é o lugar que é reservado pela sociedade maioritariamente branca, ou normativamente branca, à comunidade negra, em particular à mulher. Tem sido uma experiência muito transformadora, ainda antes de haver um espetáculo e de poder ser uma experiência transformadora para o público (que não sabemos se virá a ser ou não), por que é uma consciencialização muito grande para a necessidade de mudarmos também esta norma branca para a qual estamos todos mais ou menos conscientes, mas da qual somos todos reféns.
MGV: Quando irão estrear O Pranto de Maria Prada e o Estado do Mundo?
MF: O Pranto de Maria Parda deveria estrear em março, mas agora está em suspenso. Não se sabe ainda se estreará em abril ou apenas em outubro. O Estado do Mundo estreia em novembro.
AVP: Em relação ao Fake, depois deste período no Teatro Nacional, vai estar disponível em mais alguma plataforma ou vão levar a peça a outros palcos para além de Lisboa, quando a situação o permitir?
IB: A nossa digressão agora tem saltado sala online em sala online, infelizmente. Na sexta-feira [19 de fevereiro] deixa de estar disponível na sala online do Teatro Nacional D. Maria II e vai passar para a sala online do Teatro Nacional São João entre 24 de fevereiro e 6 de março. Temos outras apresentações que estão a ser reagendadas, algumas vão mesmo acontecer mais para a frente, outras estão a ser transformadas em apresentações online. Portanto, eu diria que mais para o verão vai ser mais fácil ver o Fake, em Torres Novas, em Coimbra, eventualmente em Almada. Em Setúbal, onde iríamos actuar nesta altura, ficará disponível em sala online. Agora estamos assim tipo dominó, vamos avançando com as próximas datas. Mas para já é isso que temos em cima da mesa.
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