Escrever torto por linhas tortas
- Crónico.
- 3 de fev. de 2022
- 3 min de leitura
Os estuários e as suas curvas
1. O jornalista deve relatar os factos com rigor e exatidão e interpretá-los com honestidade. Os factos devem ser comprovados, ouvindo as partes com interesses atendíveis no caso. A distinção entre notícia e opinião deve ficar bem clara aos olhos do público.*
de Maria Madalena Freire
Os debates, o acompanhamento da campanha eleitoral, a exposição de sondagens, os comentários e análises políticas. Estas foram as variáveis nas quais os jornalistas políticos tentaram fazer de estuário entre o rio (os cidadãos) e o oceano (os candidatos).
Nos debates, o estuário estava claramente mais interessado se o oceano Atlântico ia dar as mãos ao Pacífico, ou se o Índico ia juntar os seus cardumes com o Pacífico, e por aí em diante. Dia 30, nenhum dos oceanos deu as mãos. Alguns até caíram no esquecimento dos mapas, e outros engrossaram as suas águas.
O interesse pela politiquice, em detrimento da política, das policies, das medidas, dos programas, por parte dos jornalistas foi visível. Tentaram esclarecer aos rios que tipo de amizades e inimizades existiriam, pois são as intrigas que vendem e que dão a receita. No jornal Expresso, os jornalistas, que por norma têm de ser isentos, acabaram por se converter em comentadores políticos e analisaram as atuações de cada candidato com a mão direita, inclusive atribuindo valores numéricos às suas prestações, enquanto escreviam peças jornalísticas aparentemente imparciais com a mão esquerda. É normal que um cidadão que veja jornalista X a analisar um candidato como Y, lendo uma peça o que o primeiro faz sobre o mesmo candidato a analise ou depreenda como Y e nada mais - não há abertura interpretativa do relatar dos factos.
Caos instalado, na óptica televisiva, onde deixam que a opinião e a esfera pública sejam regidas pelo nicho piadolas de uma rede social fechada em si própria. Em seguida, vieram os animais domésticos. É sempre mais apelativo para as audiências
Na sequência da campanha eleitoral, o telejornal da RTP abre com a “polémica do twitter” entre Costa e Rio e a graça do último em relação ao voto antecipado do primeiro. Caos instalado, na óptica televisiva, onde deixam que a opinião e a esfera pública sejam regidas pelo nicho piadolas de uma rede social fechada em si própria. Em seguida, vieram os animais domésticos.
É sempre mais apelativo para as audiências - que têm de ganhar aos alertas da CMTV - saber se o gato de Rio ou a cadela de Cotrim têm ideias sobre a educação, a cultura ou a crise climática. Infelizmente, ainda não conseguimos interpretar onomatopeias. Nem os próprios jornalistas.
Ficou-se pela superficialidade de amostras pouco representativas, voláteis e, depois, dependentes da análise de uma elite de comentadores que se cingia não a notícias dadas, mas a notícias feitas.
Chegando à exposição das sondagens, é feita uma espetacularização ao estilo de uma corrida de cavalos, em que os comentadores as analisaram como quem aposta no mais rápido. De repente, em lugar de uma possível maioria para o PS, havia um empate, havia uma terceira força política pujante ou então triplamente empatada (CH, IL e BE) e no meio da salganhada, não houve contextualização jornalística dos números diariamente expostos por estas empresas.
Porém, não faltaram capas de jornais dramatizadas como se a campanha fosse a Fórmula 1 e Hamilton e Max estivessem a discutir o título do campeonato na última curva. Ficou-se pela superficialidade de amostras pouco representativas, voláteis e, depois, dependentes da análise de uma elite de comentadores que se cingia não a notícias dadas, mas a notícias feitas.
As linhas que os jornalistas políticos ultrapassaram estão à vista nestes resultados eleitorais. Muita da confusão e entropia em relação ao papel do jornalista levou a condicionamentos, levou a pouco escrutínio, levou a poucos factos e a incerteza em relação ao futuro governo.
Um jornalista tem o dever para com a verdade, para com a informação mais relevante e estruturalmente educacional para com os seus cidadãos e nunca, mas nunca, os deve condicionar com as suas peças.
Este é o perigo de uma profissão que, ao ficar financeiramente fragilizada, se destruiu e corroeu por dentro em prol do lucro. Os diretores de jornais e canais televisivos viraram economistas e gestores e os jornalistas das redações tornaram-se escravos do lucro que cada letra que escrevem pode vir a proporcionar. Se colocamos um preço no abecedário, as canetas jornalísticas já não servem o público, mas a si próprias. Para comprar mais e melhores canetas, está claro.
Há estuários que entopem e fogem para os oceanos. E os rios? Tornam-se lagos. Até secarem neste clima.
* Código Deontológico dos Jornalistas. Aprovado no 4º Congresso dos Jornalistas a 15 de janeiro de 2017 e confirmado em Referendo realizado a 26, 27 e 28 de outubro de 2017
コメント